HOMENAGEM AO CENTRINHO – Emílio Figueira / Nov.
de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela - Med. 1,00 x 1,20
- Bem, para encerrar esta
reunião semanal - pega o prontuário nas mãos -, temos aqui uma história delicada.
É o caso de uma mãe solteira. O filho nasceu com fissura e ela quer
abandoná-lo. - Vira-se para Regina: - Você pode ficar com o caso, Regina?
- Ah sim Ana Lú, pode deixar
para mim o caso.
E apanha o prontuário.
Regina,
recém-formada em Serviço Social, é bolsista do hospital. Divide o seu tempo
entre o trabalho e seu casamento, pois casou-se muito cedo, podando de uma
certa forma, a sua adolescência. Têm 22 anos, estrutura média, cabelo longo e
castanho, morena clara, com facilidade de expressar seus sentimentos no olhar,
sendo altamente sensível, gentil e dedicada aos seus deveres. É paulista de
classe média, família simples e tradicional, tendo algumas ajudas de seu pai
nos momentos de dificuldade. Sua principal ambição é ser feliz, esquecendo
algumas frustrações do passado, amando demais o seu marido. Veste-se de maneira
simples, mas com elegância.
*
* *
Na recepção do hospital há
diversos pacientes com fissuras labiopalatais e seus acompanhantes, com tipos
diferentes de roupas, representam as diferentes classes sociais e regiões do
país. Regina aparece com o prontuário nas mãos, de avental branco, parando para
perguntar:
- Quem é a mãe do paciente
Carlos Augusto?
Marta, uma moça simples, com um
bebê no colo e uma bolsa, levanta-se e caminha até Regina.
- Sou eu, senhora? - Responde
tímida, como se estivesse com medo de algo.
Regina lhe sorri:
- Por favor, acompanhe-me. É por
aqui...
E abre a porta para Marta
passar.
Na sala da Assistência Social há
o básico de um consultório. Regina começa a foliar o prontuário.
- Meu nome é Regina e sou
assistente social. Pode se sentar. Bonito o seu bebê.
- Obrigada, mas não será meu por
muito tempo.
- Mas por quê? É uma criança tão
saudável. Você parece gostar tanto dele.
- Gosto, mas não posso ficar com
ele. Sabe...
Marta começa a narrar o seu
passado. As lembranças voltam em sua mente como se fossem cenas em flashback de quando grávida, caminhava
na rua pela noite.
- A minha gravidez já foi
difícil. Trabalhava de doméstica e quando fiquei grávida, fui mandada embora.
Sem família, não tive o apoio de ninguém... Tive que lutar sozinha, pedindo
para um e para outro na rua. Principalmente comida. Para dar à luz ao Carlos
Augusto, consegui um hospital público. Aí veio o meu choque maior. Trouxeram-me
o bebê para a primeira mamada. Ninguém havia me dito nada e muito menos me
preparado para a sua realidade. Quando fui conhecê-lo, ele tinha esse defeito
na face. O bebê não tinha lábios. Em seu lugar, havia uma fenda escondendo um
sorriso que eu não conseguia imaginar. Segundo algumas explicações científicas
do médico, era um defeito congênito pela falha da fusão dos brotos embrionários
do lábio e do palato, com interrupção na continuidade dos tecidos do lábio
superior e palato.
Marta
derrama algumas lágrimas narrando a sua história. Enquanto isso, Regina está em
pé com o bebê no colo, balançando e brincando com ele.
-
Tiveram alguns momentos durante a minha gravidez que cheguei a pensar que este
bebê seria tudo para mim. Comecei a imaginar seu rosto, gestos. A escolher o
melhor nome para ele, enfim, pensei em até mudar de vida e lutar mais ainda
para poder criá-lo.
-
E o que fez você mudar de ideia com relação a isto?
Marta
demonstra mágoa ao responder:
-
O choque de vê-lo com essa fissura. Custei a crer em mais naquilo que estava
acontecendo comigo, por gerar algo não perfeito. Por que eu? Por que comigo?
Perguntava a mim mesmo. Então mudei as minhas indagações. - Começa a chorar: -
O que vai ser daqui para frente? O que vou ter que passar com essa criança,
além da miséria que já vivo? Apesar de eu amar meu filho, cheguei à conclusão
que será melhor entregá-lo para quem possa cuidar melhor dele. Além do mais,
preciso arrumar outro emprego. E ninguém vai dar emprego para alguém com uma
criança recém-nascida, concorda?
-
A caminhada é difícil, concordo. Mas agora você tem a nós aqui do Centrinho
para ajudá-la no tratamento.
-
Tudo bem, mas e depois do tratamento? Que futuro poderei oferecer a esta
criança? Não. Ele estará melhor com uma família de verdade...
Desabafa
Marta enxugando os olhos. Regina deixa cair uma lágrima e em seguida olha o
bebê que lhe sorri.
* * *
À
noite, no quarto do casal, Regina, de camisola, está sentada à beira da cama
pensativa. Adriano, de pijama, entra, sobe na cama e vai por trás acariciá-la,
ficando de joelho.
-
Que foi que a minha gata está pensativa, hein?
Regina,
indiferente às carícias, responde:
-
Estou pensando em um caso que atendi hoje. Era uma mãe solteira. O filho dela
nasceu com fissura lábiopalatal. A moça não tem condições de criá-lo e quer
abandonar a criança.
-
Sei, e daí? Histórias de abandonos de crianças não são fatos comuns todos os
dias neste país?
-
Mas essa para mim é diferente. - Levanta-se, vai até a penteadeira e vira-se
para ele: - Sabe, quando peguei aquele bebê no colo, ele me olhou com uma
ternura diferente. Uma carisma. Era como se ele estivesse me pedindo: fique
comigo, por favor.
-
Você não está pensando em...
-
Sim, eu gostaria tanto de adotar àquela criança - o interrompe, confessando com
meiguice.
Adriano,
o marido de Regina, bancário, por ter se casado cedo, assumiu responsabilidade
de seu lar. Sua vontade de progredir o faz ter obsessão pelo trabalho. Tem 23
anos, magro, alto, cabelo curto, barbeado, de pele morena. Paranaense,
descendente de classe média, família simples e humilde. Tem o segundo grau
completo, mas não pode seguir nos estudos pela dificuldade de sua família e
pela responsabilidade de seu casamento. Todavia, sente-se muito feliz por ter
se casado com a mulher que ama desde os tempos do ensino médio. É sincero,
lúcido, calmo e claro em suas exposições. Embora com algumas dificuldades,
mantém o sonho de estudar violino, praticando em sua casa nos momentos de
folga. Diante da confissão de sua esposa, ele cai na cama, cruza as pernas,
dizendo:
-
Mas nem pensar. Nós nos casamos cedo. Lutamos com dificuldades financeiras.
Enfrentando quase o dia inteiro naquele banco, fora as horas extras. Você tem
uma bolsa naquele hospital como uma ajuda de custo para se especializar em
serviço social. E agora que estamos conseguindo uma situação mais tranquila
para nos dedicarmos um pouco mais a nós mesmo, você me vem com essa ideia
maluca...
-
Mas bem...
-
Já disse que não. E além dos mais, ainda somos jovens. Depois de estabilizados,
podemos ter quantos filhos você quiser na vida. E o que é melhor; normais.
-
Mas ele é uma criança normal. Basta algumas cirurgias e aquela fissura
desaparecerá.
-
Enquanto isso, teremos esses gastos a mais.
-
Lógico que não. O tratamento no Centrinho é totalmente gratuito, seja para rico
ou pobre. Única coisa é que precisaremos gostar um tempo maior de dedicação a
ele para acompanhá-lo durante os tratamentos.
Adriano
coloca a mão na testa:
-
Ainda mais essa...
-
Mas vale à pena. Poxa, é uma vida, caramba!
O
rapaz levanta-se, vai até ela, segurando-a pelos braços:
-
Sim, é uma vida. Mas entenda. Nós não temos estrutura no momento para
brincarmos de bonzinhos.
-
Tudo bem... - Desanima.
* * *
Regina
e a Ana Lú conversam na sala de reunião.
-
Ana Lú, a mãe do bebê está realmente querendo abandoná-lo?
Ana
Lú gosta de gesticular com as mãos enquanto conversa.
-
Isto é assim mesmo, Regina. Ela está abalada com tudo o que aconteceu. Passará
por uma fase de adaptação para aceitar a realidade de seu bebê, visando
ultrapassar o problema. Em seguida virá a reorganização. Ela começará a tirar
uma experiência positiva de tudo o que aconteceu. Direcionará-se para viver a
vida com a plenitude que deve ser vivida, reassumindo o seu papel de mãe.
-
Quer dizer. Ela passará a ver o ser humano que foi gerado. Não a fenda ou a
falha?
-
Exato. Só que esse caso será acompanhado por você e por uma psicóloga. Poderá
levar tempo até que ela aceite o próprio filho.
-
Mas ela também alega dificuldades financeiras para criá-lo.
-
Talvez isso seja uma história criada por ela. Uma espécie de desculpa para
fugir de sua realidade. De qualquer jeito, precisaremos averiguar a sua
realidade. Enquanto isto, ela poderá ficar hospedada na Unidade Retaguarda do
hospital.
-
Independente disto e se no fim, ela realmente não quiser ficar com a criança?
-
Aí teremos que comunicar o caso para o Juizado Menores e encaminhá-lo para
adoção. Bem, tenho que ir. Com sua licença...
Regina
continua por ali pensativa durante algum tempo.
* * *
No
dia seguinte, no corredor do hospital, Regina encontra-se e aborda Bia, a
psicóloga de avental branco e mãos nos bolsos, vindo em direção oposta. Juntas
iniciam um diálogo informal, caminhando lado a lado, passando por pessoas,
pacientes e funcionários.
-
Por favor. A senhora é uma das psicólogas aqui do Centrinho, não é?
A
psicóloga responde num sorriso simpático:
-
Sim, no que posso ajudá-la?
-
Meu nome é Regina. Sou bolsista do setor de Serviço Social. É que tenho um caso
delicado em minhas mãos e gostaria de tirar algumas dúvidas.
-
Estou livre agora. Podemos conversar enquanto caminhamos. Vamos?
-
Sim, vamos - sorri.
Começam
a caminhar.
-
Caso delicado, você disse?
-
Sim... A mãe está rejeitando o filho. Minha supervisora chegou até dizer que
ela primeiro passará por uma fase de reorganização. Depois poderá cair na
realidade e até mudar de ideia.
-
Talvez. Uma pessoa pode demorar três dias para se reorganizar. Mas poderá também
levar trinta anos para isso. Esse é um processo delicado. De um modo geral,
quanto melhor for o astral da família da criança, melhor serão os resultados.
-
Mas esse é o grande problema dela. Não tem família e é mãe solteira. Resumindo.
Ela não tem ninguém na vida para apoiá-la.
-
É uma situação mais delicada ainda. Geralmente, as mães que dão à luz crianças
com fissuras, têm as seguintes preocupações iniciais. Modos de alimentação,
cirurgia e desenvolvimento posterior da criança, nessa mesma ordem.
-
Ela realmente manifestou temer quanto ao futuro de seu bebê, se este continuar
em sua companhia.
-
É sempre assim. Mas uma forma de você ajudá-la a superar essa fase a fazê-la
procurar descobrir o filho real que está atrás das aparências.
Elas
saem do corredor e continuam a caminhar pelo pátio do hospital, onde há muito
verde, viveiro de pássaros, crianças com o uniforme azul e branco do hospital
brincando e correndo, acompanhadas de seus pais. Um dia de Sol e muita alegria.
O diálogo delas continua neste clima positivo.
-
A mãe que se prende muito no concreto e que olha para a criança e vê uma fenda
nos lábios ou uma falha física tem uma dificuldade maior de criar um vínculo
positivo com a criança. Ao contrário, a mãe que presta mais atenção nas reações
da criança começa a descobrir que seu filho não se resume ao problema físico
aparente, o que promove a reorganização com mais facilidade.
-
Tudo bem. Mas eu tenho uma curiosidade. Rejeitar um filho que nasce com fissura
é fato comum?
-
É, nesses meus mais de quinze anos trabalhando nesta área, já vi fatos bem
interessantes. Certa vez, um casal de médicos teve um bebê com fissura. Eles,
mesmo sendo doutores, não admitiriam de jeito nenhum o fato de ter gerado uma
criança com esse tipo de problema. Rejeitaram a criança e nem voltaram para
buscar.
- Nossa, que coisa, não!?
-
Outra vez, foi um casal de japoneses. Tiveram uma filha com fissura. Não
contaram para ninguém fora da família que tinha essa criança e a mantiveram no
porão de casa. Levou 32 anos para alguém descobri-la lá. Depois que foi trazida
para o Centrinho, foi totalmente reabilitada e tem que vê que japonesa linda
que ficou.
-
É difícil até de acreditar numas coisas dessas.
-
Todavia, o lado positivo dessa realidade é bem maior. Veja todas essas pessoas
contentes e feliz é algo compensador. O nosso Centrinho já completou mais de
três décadas de funcionamento. São mais de 22 mil pessoas de todas as idades,
regiões do país e de toda a América Latina completamente reabilitadas - sorri.
Afinal, não é a toa que o Centrinho é reconhecido como Centro de Excelência
pelo Ministério da Saúde e de Referência Mundial pela Organização Mundial de
Saúde.
-
É, tem razão...!
* * *
Regina
não aguenta de curiosidade em querer saber quais as verdadeiras intenções de
Marta. Vai até o Retaguarda, unidade que, embora pertencente ao Centrinho, fica
em outra localidade da cidade. Um prédio comprido, de três andares com vários
quartos onde são abrigadas mães e pacientes em tratamento no hospital. O pátio
todo cimentado, em volta muito verde, coqueiros e um playgraune. À frente cercada por grades pretas e altas.
Ao
chegar à portaria, ela pede para conversar com a psicóloga. Logo é levada a uma
sala ali mesmo no térreo. Entrando, ela vê logo uma estante com alguns
brinquedos, vários pequenos vasos de flores, tapete, a escrivaninha com papel,
agenda uma bolsa feminina, chaves de carro e um vaso de flores do campo. Um
ambiente claro com muitas janelas de vidro. É recebida por Silvana, uma moça
alta de estrutura forte, cabelo comprido e loiro, rosto pontudo, lábios
pintados de vermelho e olhos amorosos, que se apresentou como a psicóloga. Após
se cumprimentarem, cada uma sentou-se em um sofá.
-
Mas no que posso ajudá-la? - perguntou a psicóloga com uma voz doce de menina.
-
É com relação a uma mãe está que hospedada aqui. Seu nome é Marta e estou
acompanhado o caso dela. Parece-me que ela quer abandonar o filho.
-
Sim, eu a atendi fazem três dias. Realmente ela me pareceu convicta em fazer
isto.
-
Desculpa-me se meter no seu trabalho Silvana, mas eu gostaria de saber se você
sentiu nela alguma possibilidade de mudar de ideia e ficar com a criança?
-
Bem Regina, o fato de eu ter tido só um pequeno contato com ela, não tem como
responder essa sua pergunta. Minha intenção inicial era fazer um trabalho
conscientizando-a que uma criança que nasce com dificuldades em sua estrutura
biológica, poderia até ficar privada de uma série de benefícios que o
desenvolvimento de uma outra criança pode proporcionar. Só que hoje nós temos o Centrinho, onde a
ciência e a tecnologia são de grande importância para o restabelecimento das
estruturas afetadas. E a participação dela como mãe no tratamento do bebê
também será de vital importância, sendo a maneira como permitir ou o modo como
favorecer o desenvolvimento da criança através de sua relação afetiva.
-
E você pretende realizar este trabalho com esta mãe?
E
Silvana responde-lhe fazendo uma revelação pela qual Regina não espera:
-
Difícil. Fazem dois dias que ela sumiu, abandonando o bebê lá no berçário do
Centrinho...
* * *
De
volta ao hospital, Regina vai entrando no berçário. No berço, Carlos Augusto
dorme. Regina se abaixa e começa a acariciar sua cabeça, olhando-o com ternura.
Sua voz aparece em forma de pensamento.
“Como
você é lindo. Tão meigo e inocente. Nem imagina o que está se passando a sua
volta... Não sei por que me identifico tanto com você? Até parece que realmente
saiu de dentro de mim...”
Uma
enfermeira se aproxima com uma mamadeira na mão.
-
Pois não... Posso ajudá-la em alguma coisa?
Regina
responde levantando-se:
-
Bem, eu sou a assistente social que está acompanhando o caso dele. Só vim ver
como ele está passando.
-
Tudo bem. Pensei que fosse a mãe dele que, apesar de todos os nossos cuidados,
está desaparecida. Desde ontem de ontem ela não aparece aqui. Nem liga para
saber como o seu filho está. Nem se quer vem amamentá-lo.
-
Faz tempo que a senhora trabalha na amamentação desses bebês?
-
Sim, minha filha, longos anos, mas gratificantes. E aprendo muito com eles. Por
exemplo, quando a criança está no útero de sua mãe, a conexão umbilical lhe
assegura um suprimento alimentar permanente. Já o recém-nascido terá uma
conexão temporária, sendo a união de sua boca com o seio da mãe. Isso exigirá
dele o aprender da coordenação dos movimentos no ato de beber e respirar
simultaneamente, de maneira que não engasgue a leve leite para os pulmões ou
fique com dor de estômago por levar ar para os intestinos. São tendências autorreguladoras
que funcionarão se a mãe tiver uma sensibilidade suficiente para ajudar a
criança em seu fluxo alimentar com a demanda, aprendendo a distinguir o choro
de fome do choro de desconforto.
-
Desculpe interromper a senhora, mas ouvi dizer uma vez na faculdade que quando
a criança estiver chorando muito, o excitamento não permite que ela pegue o
seio porque não consegue fazer dissociação.
-
Exatamente. É por isto que quando há muito choro, a mãe precisa acalmá-lo antes
de amamentá-lo.
-
Mais uma curiosidade minha. No caso desses bebês com fissura, o processo de
amamentação é o mesmo?
-
Infelizmente, as crianças que nascem com fissuras, têm muitas dificuldades com
a alimentação. Quanto maior for a fissura labiopalatal, maiores cuidados
devemos tomar, não permitindo que ocorra infecções, desnutrição, engasgos,
vômitos e outras coisas mais.
-
E existem algumas técnicas especiais para amamentá-los?
Regina,
sentindo um instinto de mãe, começa a se interessar cada vez mais pelo assunto.
E a experiente enfermeira lhe responde:
-
É, existem alguns cuidados especiais. Há certa dificuldade de se neles a
entrada de ar junto com a alimentação, por causa da fissura. Só que existem
meios para ajudar, como por exemplo, colocando-se a criança o mais de pé
possível em frente ao seio. Ou seja, a mãe deve se sentar com suas costas retas
e apoiadas numa cadeira, mantendo-se nesta posição por um bom tempo. Assim ela
estará facilitando a sucção do bebê justamente porque a gravidade está a favor.
Será uma tarefa de muita paciência e tensão redobrada para que o escape de
alimentos pelo nariz, acesso de tosse, ingestão excessiva de ar, obstrução
nasal e afogamentos podem acarretar danos à saúde do bebê.
Pensando
no caso de Carlos Augusto, Regina resolve perguntar à enfermeira:
-
Mas e no caso daqueles bebês que, por exemplo, são abandonados e não tem o seio
materno para mamar? Existe alguma técnica especial?
-
Há sim, moça. Para as crianças que se alimentam através de mamadeira, há um
modelo especial com o furo para cima, cujo tamanho deve permitir que o líquido
saia em gotas, facilitando o controle da saída do leite em proporções mais
adequadas, o que irá favorecer o fato do bebê engasgar-se menos. Seja qual for
o bico o furo deverá favorecer o gotejamento do líquido. Só que, mesmo
existindo essa mamadeira especial, nunca se deve negar o seio para a criança só
porque ela tem uma fissura. O leite materno é insubstituível. Esses bebês devem
ter a mesma alimentação do que qualquer um de sua idade, uma vez que precisam
das mesmas quantidades de vitaminas, sais minerais, ferro e outros elementos
necessários para o seu desenvolvimento. Além do que, quando um bebê está
mamando no seio de sua mãe, pode se dizer que ele está firmando sua boca...
Regina
percebe a mamadeira na mão da enfermeira e se atreve a perguntar:
-
Essa mamadeira é para ele?
-
Sim, está na hora dele mamar.
-
Será que, mesmo não tendo a técnica, eu posso dar para ele? - Indaga sem jeito.
-
Claro. Se quiser, fique à vontade. Eu
lhe explico como fazer.
Regina,
após aquela “aula” de amamentação, pega Carlos Augusto no berço, a mamadeira da
mão da enfermeira e começa a amamentá-lo, feliz pelo seu ato.
* * *
Hora
do almoço. Regina e Adriano estão em uma mesa da cantina do hospital, debaixo
de uma árvore ao ar livre, comendo um lanche com refrigerante. Conversam
enquanto comem e, no desenrolar do diálogo, Adriano vai demostrando cada vez
mais interesse pelo assunto.
-
Ainda bem que pude eu dar uma fugidinha do banco para lancharmos juntos.
-
É mesmo... Já reparou? Esses nossos momentos de convívio têm se tornado cada
vez mais raros atualmente.
-
É a correria do nosso dia a dia. Depois
então que você começou a ser bolsista deste hospital, só nos resta a noite para
nos vermos. Estou com dificuldades até para estudar o meu violino, pois tenho
que dividir o tempo com minha gata.
-
Ah, mas está valendo à pena. Sabe? Estou cada vez mais apaixonada por esse
universo.
-
Percebe-se.
-
Hoje pela manhã conversei com uma psicóloga. Ela me deu uma verdadeira aula
sobre pessoas com fissuras e seus familiares.
-
E aí?
-
É interessante notar que o índice de aceitação é melhor nas famílias de nível
social mais baixo. Mesmo sofrendo com o choque inicial de ter um filho com uma
deficiência de malformação.
-
Mas por quê?
-
Isso devido a sua condição precária e uma formação cultural mais humilde,
aceitam a realidade com mais facilidade. Muitas vezes, acreditam que nada podem
fazer para melhorar. Ou seja, reabilitar o seu filho. Motivo que as levam à
buscar explicações em superstições, crenças populares ou valores teológicos, já
que é mais fácil aceitar a ideia de que o acontecido está de acordo com a
vontade de Deus.
-
Interessante...
-
É. Só que geralmente essas pessoas não procuram tratamentos especializados para
os seus filhos. Os problemas e dificuldades no sistema e saúde oficial e a
falta de informações específicas neste sentido, as fazem imaginar e visualizar
sérios e inconformáveis problemas, que podem resultar na procura do nada.
Muitos até desistem da busca do tratamento, justificando a alta porcentagem de
pacientes não tratados.
-
Mas isso não acontece nas famílias de outras classes sociais, imagino?
-
Infelizmente pode acontecer problemas piores.
-
Como assim, bem?
-
Em algumas famílias de poder aquisitivo mais elevado, ocorre o contrário. A
busca de tratamento cirúrgico é praticamente imediatista, esquecendo-se
inclusive, que a criança poderá enfrentar sérios riscos.
-
Verdade?
-
Verdade. O desespero é tal que os pais nem sequer exigem cirurgiões
especializados na área, o importante é eliminar a fissura; não importa como.
Coisa ligada a um trauma social: como comunicar? Como mostrar aos amigos o
filho que nasceu fissurado?
Adriano
espanta-se:
-
Incrível. Tipo de um preconceito social, você diz?
-
Exato. Os pais e familiares mais íntimos, muitas vezes, condicionam as visitas
somente após o tratamento cirúrgico, que se transforma no elemento salvador e
dissipador de todos os problemas sociais decorrentes.
-
Quer dizer, não existem superstições e nem crenças. Mas há uma preocupação de
manter o status de uma família perfeita, para não ser assunto nas rodinhas
sociais.
-
Ainda tem mais. Essa atitude pode acarretar em geral repercussões extremamente
danosas à criança, que é recebida no lar sob tensão. Além de influenciar no
desenvolvimento social e emocional de quem tem fissura labiopalatal.
O
casal levanta-se da mesa e continuam a conversar caminhando pelo jardim do
hospital de mãos dadas.
-
Lindo este Centrinho, não? Tudo aqui ter um ar de bem-estar. O ambiente é
alegre, colorido e descontraído com a predominância dessas crianças correndo em
seu interior.
-
É... Aqui, fora o tratamento de reabilitação, todos os pacientes contam com uma
extensa programação cultural e recreativa, recebendo, inclusive, aulas para que
não percam o ano letivo em suas escolas. É um lugar de muitas expectativas,
realizações e alegrias.
-
Bem, mas agora vamos falar um pouco de nossa família. Precisamos arrumar mais
tempo para nós dois.
-
Também estive pensando nisto, meu bem. E descobri um jeito de nos unirmos ainda
mais.
-
O que a minha gata está planejando? Posso saber?
-
Um filho.
-
Não vai me dizer que você está gravida!? - Espanta-se.
-
Não, não é isso - completa meia sem jeito: - Estou falando do Carlos Augusto...
Adriano
solta de sua mão:
-
Ah...! Mas vem você de novo com esse papo. Nós estávamos tão felizes até agora.
-
Hoje eu estive com ele. Até lhe dei uma mamadeira. Foi um momento tão lindo
para mim. E também senti que ele estava feliz e se sentindo protegido em meus
braços.
O
rapaz para em frente a ela e segura seus braços:
-
Regina, entenda, pelo amor de Deus. Nós não estamos em condições no momento de
adotar uma criança.
-
Tudo bem. Pelo menos, eu gostaria que você conhecesse o Carlos Augusto. Vamos
comigo até o berçário?
Regina
pede-lhe com ternura. Mas Adriano responde bravo:
-
Eu já disse que não quero mais falar neste assunto. - Olha para o seu relógio
no pulso: - E quer saber de uma coisa? Já está na minha hora. Tchau!!!
E
sai andando com pressa. Regina grita, mas logo desanima:
-
Espera. Droga...!
* * *
No
dia seguinte, em sua sala, a Ana Lú - assistente social chefe - está guardando
pastas em seu arquivo, quando Regina bate na porta entrando.
-
Dá licença?
-
Ah, é você Regina. Pode entrar.
-
Mandou me chamar?
-
Sim. Pode se sentar que já vamos conversar. - Fecha o arquivo. Pronto. Terminei
a minha arrumação. Vem sentar-se: - Mas me diga. Como vai o caso Carlos
Augusto?
-
Eu iria mesmo lhe procurar com relação a ele. Infelizmente não tenho uma
notícia muito boa. Apesar de todos os cuidados e atenção de nossos
profissionais, a mãe dele desapareceu lá do Retaguarda. Fazem três dias que ele
foi deixado no berçário aqui do hospital.
Ana
Lú levanta-se e começa a caminhar pela sala:
-
Essa não. Logo agora que ele está com dois meses e meio. Recebendo os
atendimentos terapêuticos básicos. Prestes a sofrer a primeira intervenção
cirúrgica.
-
E agora, qual o nosso próximo passo?
-
Você vai ter que descobrir onde está a mãe do garoto e visitá-la.
* * *
Em
um típico quarto de empregada - com televisão, beliche e outros detalhes mais
-, Marta, com uniforme de doméstica, abre a porta por fora entrando primeira.
-
Por favor, pode entrar.
Regina,
com uma pasta na mão, vai entrando:
-
Dá licença.
-
Toda. Desculpe eu ter que receber a senhora aqui no meu quarto. Mas os meus
padrões estão para chegar.
-
Não tem importância.
Marta,
vai tirar as roupas sem passar de cima de uma cadeira, jogando-as num canto da
cama:
-
Pode se sentar, dona Regina.
-
Pode tirar a dona, Marta. - Acha graça no jeito de Marta e senta-se: - Mas me
diga, faz tempo que você está trabalhando aqui.
Marta,
senta-se na cama, respondendo:
-
Hoje fazem quatro dias.
-
E é por isso que você não foi mais ver o seu filho?
-
Entenda - sem graça: - Foi difícil eu arrumar este emprego. Já sofri muito na
vida. Não queria perdê-lo.
-
E o seu filho, não é importante? Não poderia também estar aqui com você?
-
Meus patrões nunca iriam aceitar uma doméstica mãe de um bebê. Além do mais, eu
não tenho nada para oferecer a ele como seguridade e educação. Ainda mais com a
fissura que ele nasceu, vai requerer uma dedicação e um tratamento longo e
demorado.
-
Desculpe Marta, mas isto não é desculpa. Você sabe que tem a nós lá do
Centrinho para oferecer atenção, carinho e uma das melhores estruturas no
tratamento do Carlos Augusto. São inúmeros profissionais trabalhando
incansavelmente para isto. E pode ter a
certeza que após todo o tratamento, ele ficará totalmente reabilitado.
-
Eu sei disto.
-
Então, Marta. dê uma chance ao seu filho. E principalmente a você para ambos
fazerem um ao outro feliz.
-
Bem que eu queria. - Coloca as mãos no rosto e começa a chorar: - Mas não
posso...
-
Essa é... A sua resposta definitiva?
Marta,
chorando, não consegue responder, deixando a resposta no ar.
* * *
Regina
está dentro de um ônibus coletivo, voltando ao hospital. Enquanto observa a
paisagem na janela, vai pensando:
“Como
pode uma mãe rejeitar um filho assim? Em compensação, eu que quero dar tudo de
bom para aquela criança, encontro tanta resistência. - Um suspiro. Ah!, como eu
queria pegá-lo em meu colo como se fosse meu. Dar banho. Trocar a sua roupinha.
Amamentá-lo. Passar noites acordada, quando ele estiver doentinho. Lutar pela
sua reabilitação, vendo o Carlos Augusto crescer ao lado meu e do Adriano,
chamando-nos de papai e mamãe”.
* * *
Na
sala de Ana Lú, ambas têm uma conversa profissional.
-
Conversei com Marta. Ela realmente não quer o Carlos Augusto.
-
É... Realmente temos que dar uma solução o mais rápido para o desfecho deste
caso.
-
Vamos encaminhá-lo para adoção, você quer dizer?
-
Sim. Infelizmente fatos como este acontecem aqui de vez em quando. Porém,
sempre conseguimos bons desfechos para todos, através do nosso projeto “Adoção”
mantido pelo nosso departamento. Nós assistentes sociais somos responsáveis em
cadastrar casais de Bauru, outros municípios brasileiros e também do Exterior
interessadas em adotar pacientes com lesões labiopalatais.
-
Sim Ana Lú. Mas como é feio a seleção para essa adoção?
-
Simples, Regina. Mantemos um cadastro com o nome de crianças e adolescentes com
má formação labiopalatal ou de outra síndrome associada nascida em Bauru ou em
outro município que estão a disposição da justiça para adoção. Já os casos de
fora da cidade chegam ao nosso conhecimento através daqueles pais que
representam o Centrinho em outras localidades. Além do serviço de difusão de
informações do serviço de reabilitação mantido pelo nosso hospital, eles
visitam as maternidades, centros de saúde e instituições. Quando descobrem que
há crianças com fissuras abandonadas, ou que os cujos pais não têm condições de
mantê-los e, por isso, estão disponíveis para a adoção, comunicam-nos, entrando
para o nosso cadastro.
-
E com relação ao Carlos Augusto, já tem algum casal interessado em adotá-lo? -
Regina pergunta com certo tom de medo da resposta.
-
Não, pois ele ainda não foi declarado disponível para adoção. Mas com certeza,
também vamos dar um bom encaminhamento para o caso do Carlos Augusto.
* * *
Saindo
da sala de Ana Lú, Regina encontra a psicóloga Bia, que lhe pergunta
gentilmente.
-
Olá, como vai?
-
Tudo bem. Será que a senhora tem um minutinho para eu lhe fazer uma pergunta?
-
Sim. Vamos até a minha sala.
Juntas,
caminham pelo corredor. Já no interior da sala, sentam em um sofá para a
conversa. Bia toma a iniciativa:
-
Pelo o que vejo, você está com muita vontade de ficar bem-informada. Posso
saber se há algum motivo especial para que tanto aprofundamento na vida dos
fissurados?
-
Nenhum. Apenas uma curiosidade profissional - e sorri disfarçando.
-
Então vamos lá. Pergunte...
-
Sabe o que é? Eu gostaria de saber o que pode acontecer na parte psicológica,
tipo distúrbios estéticos de alguém que nasce com uma fissura?
-
Bem, as primeiras manifestações de insatisfação estética aparecem quando a
criança percebe que o aspecto de seu rosto é diferente. Isto ocorre em média a
partir dos dois anos e meio de idade.
-
É quando ela começará a tomar consciência de si mesmo?
-
Sim. Já o segundo choque se dará quando desabrocham as tendências de
sociabilidade, processo mais que normal na vida de qualquer pessoa.
-
Será quando ela começará a ter a necessidade de conviver com outras crianças,
da tendência natural e irresistível de participar dos agrupamentos infantis?
Bia
balança a cabeça positivamente, respondendo:
-
Nessa fase surgirão as curiosidades das outras crianças observam e indagam
sobre as razões das malformações. A consequência primária, lamentavelmente, o
leva ao isolamento espontâneo, a abstenção do convívio em grupos, é a
segregação voluntária.
-
E na época escolar?
-
Na escola... Bem, vou lhe emprestar um livro aqui da minha estante - levanta-se
e vai apanhá-lo, voltando -, que vai lhe responder muitas de suas dúvidas. Pode
lê-lo com calma, certo...
E
Regina lhe agradece num sorriso.
* * *
No
balcão de uma lanchonete, Mário, de gravata e sem paletó, está lendo um artigo
de jornal enquanto toma um café. Adriano entrando, vai até o seu lado, senta-se
e pede para garçonete:
-
Por favor, um café. – Observa: - Mário, como vai você?
-
Adriano!? Que bom revê-lo.
E
dão um aperto de mão.
-
O que o meu amigo advogado está fazendo por aqui?
-
Vim tomar um café, enquanto leio um artigo sobre o processo de adoção.
-
Você disse adoção? - E toma um gole do café.
-
Sim. Estou com um caso desse lá no escritório. Interessante notar que essa é
uma maneira definitiva de se estar oferecendo amor a uma criança.
-
Como assim, Mário?
-
Não basta apenas querer e estar motivado. É preciso que o casal esteja
preparado para assumir a responsabilidade pela adoção.
-
O que significa capacidade de dar e receber amor, paciência e maturidade. Ou
seja. Não basta apenas o casal. Ele também precisa ser adotado pela criança.
-
Correto. Pode acontecer também que necessidades inconscientes não satisfeitas são
camufladas por um ato de adoção. Lembro-me que na época da faculdade,
acompanhei o caso de um casal que adotou um bebê só para alegrar o lar.
-
Então para eles vinham o bebê como um simples objeto para produzir alegria.
Esqueceram que a criança era um ser humano com necessidades, qualidades e
defeitos.
-
Pois é. Sem se falar ainda no velho problema do racismo. Aqui em nosso país,
ninguém quer adotar uma criança negra. Já houveram algumas tentativas de
conscientização por parte do poder público. Mas essas crianças têm menos
chances na hora da escolha. Até mesmo pais adotivos negros preferem crianças
pardas ou claras e de cabelos lisos.
-
Inacreditável isto!
-
Mas é verdade. - Dobra o jornal e começa a se levantar para sair: - Sobretudo
meu amigo, adotar uma criança, significa amá-la e educá-la, respeitando suas
características individuais, tratando-a com carinho, sem jamais menosprezá-la.
Afinal, são muitas as crianças sem um lar. Mas também são muitos os lares sem
uma criança!
Dá
um tapinha na costa de Adriano e um sorriso.
* * *
Na
sala de espera do hospital, Regina sentada em uma poltrona demonstra
nervosismo. À porta principal, aparece Adriano, observando todo o ambiente. Ao
vê-la, vai até lá, abaixando-se a sua frente e lhe diz com carinho.
-
Você estava demorando para chegar em casa. Então resolvi vir ver se estava
acontecendo alguma coisa.
Regina
olha-o com ternura.
-
É o Carlos Augusto. Ele está passando por um momento delicado. Uma infeção que
pegou por desnutrição devido as condições precárias em que vivia. E como você
pode vê, aqui não há nenhum parente ou amigo por ele. Nem mesmo a sua mãe -
aponta com lágrimas nos olhos: - Então eu me sentir na obrigação de ficar aqui
torcendo pelo seu restabelecimento.
Adriano
senta-se ao seu lado e a abraça.
-
Calma. Agora eu também estou aqui com você.
-
Sabe? O Carlos Augusto já está na época dos primeiros tratamentos.
-
E quanto tempo esse tratamento pode levar.
-
Ainda não podemos saber ao certo. É um tratamento lento e intenso de reconstrução
orgânica e psíquica para remover as barreiras físicas e sociais que podem
atrapalhar o desenvolvimento do paciente. Para que isto ocorra da melhor forma
possível, recomenda-se que o tratamento em fissurados labiopalatais comece no
mesmo dia do nascimento da criança. O pediatra deve abordar os pais com
honestidade, não subestimando ou exagerando o fato, mas orientando dos
procedimentos com a alimentação, higiene, bem como indicando os caminhos para o
melhor tratamento. Já os pais devem fazer a nossa parte com dedicação,
perseverança e carinho com o filho fissurado, encaminhando-o o mais rápido
possível para um diagnóstico médico especializado.
Adriano
ouve tudo aquilo em silêncio, percebendo que sua esposa está dando todas aquelas
explicações para disfarçar o nervosismo. Minutos após, ele resolve revelar.
-
Hoje, por curiosidade eu estava conversando com um amigo advogado lá do banco.
E ele me falou justamente sobre o processo de adoção de uma criança.
Regina
enxuga com as lágrimas, sai dos braços de Adriano, olhando-o de frente.
-
Mas por que você teve curiosidade desse assunto?
Uma
enfermeira entra e vai até eles interrompendo o diálogo, contando-lhe:
-
Regina, o Carlos Augusto está reagindo muito bem aos medicamentos e tudo está
correndo normalmente. O bebê já pode ser visitado.
-
Graças a Deus...
-
Você deseja vê-lo?
-
Sim, muito. - Vira-se para Adriano, pedindo com carinho: - Vem comigo?
-
Sim, vou...
Começam
a seguir a enfermeira, quando Regina dá uma parada e olha para Adriano:
-
Você ainda não respondeu a minha pergunta.
-
Realmente, é muito importante para você adotar esta criança?
-
É a coisa que eu mais quero neste mundo. Sermos felizes nós três juntos!
-
Me dá um tempo. Prometo pensar com carinho... - Aponta a porta: - Vamos?
Regina
lhe sorri... E passam pela porta.
* * *
De
novo no jardim do hospital. Ana Lú e Regina vindo em direções diferentes,
encontram-se, começam a conversar caminhando.
-
Bom dia, Ana Lú...
-
Bom dia - sorri. Foi bom você ter aparecido. Tenho uma informação para você com
relação ao Carlos Augusto. Daremos mais alguns dias para vê se a mãe dele não
se arrepende. Caso não, ela terá que renunciar a guarda do filho perante à
Justiça. Depois, encaminharemos o caso para o Juizado de Menos abrir o processo
de adoção. - Ana Lú dá um suspiro e começa a relembrar de alguns fatos: - Sabe
Regina, esse caso tem tudo para ser mais uma história com final feliz. Temos
vários outros casais que já adotaram crianças com fissura labiopalatais.
Despidos de qualquer preconceito, eles aceitaram a ideia de cuidar desses
pequenos, mesmo sabendo que por muitos anos vão se submeter a uma série de
cirurgias e tratamentos para recompor a estética facial.
-
É um tipo de amor à primeira vista, certo?
-
Exato. Logo de início todos são unânimes em afirmar qual a deformação no lábio
passou despercebida. Criavam uma grande ansiedade em levar a criança para casa,
que a mesma suplantava a curiosidade em analisar quais seriam os defeitos da
criança. Mas felizmente, após ter formalizada a adoção e de algum tempo de
convivência com a criança, esses pais adotivos percebem que tomaram a decisão
certa.
-
Tudo bem, Ana Lú. Mas no caso em específico do Carlos Augusto, o que é preciso
para um casal adotá-lo?
-
Que o casal esteja cadastrado lá no Juizado de Menores e aqui no hospital. Uma
assistente o visitará, verificando a condição do casal para a adoção.
-
Sei...
-
O casal passará por um estágio de convivência com a criança ou adolescente,
pelo prazo qual a autoridade judiciária fixar. O processo de adoção não chega a
ser demorado. Leva em média seis meses, dependendo cada caso. Mas por que você
quer saber?
Param
frente a frente.
-
Gostaria que você soubesse que eu também serei candidata a adoção do Carlos
Augusto!!!
Ana
Lú fica um pouco surpresa e pergunta:
-
Você está segura dessa decisão?
-
Sim, Ana Lú. O meu interesse pelo Carlos Augusto também foi paixão à primeira
vista. Farei de tudo para ficar com ele. E espero contar com seu apoio.
-
Tudo bem, Regina. Só que você e seu marido precisarão passar pelos transmites
legais do processo de adoção. Geralmente, os casais interessados em adotar,
passam por uma primeira entrevista, onde lhe são mostradas as fotos das
crianças disponíveis para adoção, especificando suas características e síndrome
do qual elas são portadoras. Caso há o interesse por alguma, dar-se início a
outras entrevistas posteriores. Agora no seu caso que já tem definida a criança
que quer adotar, poderemos marcar um dia para você e seu marido começarem a
participar dessas entrevistas. É fundamental que vocês estejam cadastrados aqui
no Hospital para facilitar o processo.
-
Certo, Ana Lú. Vou providenciar isso. Obrigada.
* * *
À
noite, Regina chega em casa e encontra Adriano estudando violino. Após um
gostoso beijo, ela vai direto ao assunto.
-
Amor, preciso conversar com você.
-
O que foi, minha gata. - E continua tocando.
-
Conversei hoje com a minha chefe. Nós precisaremos nos cadastrar lá no
Centrinho, e passar por algumas entrevistas para conseguirmos adotar o Carlos
Augusto.
Adriano
deixa de tocar e olha sério para Regina, dizendo:
-
Mas eu não disse que iríamos adotar o Carlos Augusto. Disse apenas que iria
pensar no assunto.
-
Está certo. Mas não podemos ficar esperando a sua boa vontade de pensar, então
tomei a iniciativa de nos candidatar à adoção dele - diz ela com firmeza: -
Agora caso você não queira, pela nova lei eu posso adotá-lo sozinha. E é bom
que você saiba que farei de tudo para conseguir isso.
-
Tudo bem. Agora posso saber para que são essas entrevistas?
-
Serão para analisar as nossas condições de adotar o Carlos Augusto.
-
Está vendo, Regina. Logo de começo eles perceberão as nossas dificuldades
financeiras e o Juiz não autorizará essa adoção.
-
Aí que você se engana, Adriano. Isso não implica em dizer que precisaremos ter
alto poder aquisitivo, mas sim que tenhamos o mínimo necessário para cuidar
dele. Precisaremos principalmente ter sensibilidade e saber o quanto vamos
precisar passar de amor pelo Carlos
Augusto. Afinal, ele está em situação de exclusão social e não está em nível de
igualdade com outras crianças. Por causa disso, essa criança vai precisar mais
do que nunca de apoio e disponibilidade.
-
Acho que você ainda não caiu na realidade do tamanho da responsabilidade que
está querendo arrumar para nós, Regina...
-
Sou uma assistente social, Adriano. Sei o que estou fazendo. Então posso ou não
posso contar com você?
-
Amanhã eu lhe dou uma resposta.
Adriano
coloca o instrumento em cima do sofá e começa a sair.
-
Não vai estudar mais?
-
Perdi a vontade - responde de costa.
Quando
estava quase na porta, Regina lhe chama.
-
Adriano?
-
O que foi? - pergunta virando-se para traz.
-
Tem mais uma coisa. Também vamos nós vamos precisar nos inscrever no Juizado da
Infância e Juventude de Bauru para facilitar o processo.
-
Ainda mais essa - resmunga baixo, saindo.
“O
homem difícil” - pensa Regina.
* * *
Na
manhã seguinte, ao acordar, Adriano pergunta à esposa:
-
Até quando temos que ir ao Fórum nos cadastrar para adoção?
-
Por que você quer saber? - Indaga Regina já sentindo uma ponta de alegria.
-
Eu lhe perguntei primeiro...
-
Temos que ir o mais rápido possível, pois o Carlos Augusto vai ser colocado à
disposição para adoção.
-
Podemos ir hoje então...
-
Você quem sabe, Adriano - concorda ela, não querendo entrar em detalhes se o
marido havia mudado de ideia ou não.
Uma
vez em que Adriano entra só às 10:00 horas no banco, o casal vai logo pela
manhã ao Centrinho se cadastrar no Projeto Adoção. Lá, a assistente social
responsável pelo projeto, realiza a primeira entrevista, sondando se o casal
está realmente preparado e consciente do ato que querem praticar, se sabem o
que significa adotar um bebê, suas
intenções e a amor que eles pretende oferecer a criança. A assistente
social procura segurança neles para saber se o Carlos Augustos estará em boas
mãos, em um lar preparado para recebê-lo.
* * *
Aproveitam
a hora do almoço para fazer o outro cadastramento. Atendidos por uma assistente
social do Fórum, uma entrevista semelhante é realizada com Regina e Adriano
sobre a vontade de adoção, as possibilidades mínimas deles para oferecer um lar
e estabilidade emocional e quais as características da criança que desejam
adotar, como é de rotina. Com relação a esse último item, Regina informa-lhe
que eles já haviam escolhido o bebê. A própria assistente social se prontifica
de entrar em contato com a sua colega no Centrinho para agilizar o processo.
Mas antes de saírem da sala, já fica agendada a entrevista com a psicóloga do
Fórum e a visita dos agentes em seu lá.
* * *
No
centro da cidade, antes de se despedirem, Regina lhe diz:
-
Obrigada por você está colaborando com o meu sonho, bem.
-
Regina, não se empolgue antes da hora certa. Estou fazendo isto, nem sei o
porquê. Apesar de eu não estar bem confiante na minha decisão, algo mais forte
está me impulsionando a fazer isso.
-
Eu sei o que é isto, Adriano. É o sentimento paterno que começa a florar.
* * *
Em
casa, à noite, eles continuam a conversar.
-
Será que tudo isso que estamos fazendo não será inútil, Regina? Afinal, a mãe
do garoto nem renunciou a guarda definitiva ainda?
-
Mas irá renunciar, Adriano. Tenho certeza.
-
E se ela resolver ficar com a criança?
-
Você ainda não está decidido que quer essa adoção, não é?
-
É, realmente... Estou muito inseguro. Por favor, entenda. Não é tanto pela
criança. Temo pela nossa dificuldade financeira em poder oferecer alguma coisa
de bom para ele.
-
Eu sei que temos dificuldades. Mas onde comem dois, comem três.
-
Só que esse terceiro é um bebê. As despesas são bem maiores...
-
Está certo, vamos ter um período apertado. Mas com o seu emprego no banco e a
ajuda de custos da minha bolsa no Centrinho, vamos caminhar bem. De qualquer
jeito, mesmo no pouco, será melhor do que deixarmos essa criança abandonada na
rua ou em um orfanato qualquer. Concordo, o altruísmo não deve fazer parte das
motivações de casais candidatos à adoção. Segundo a psicologia, muitas vezes,
esses casais podem imaginar que estarão fazendo um bem à sociedade ao adotar
uma criança órfã ou abandonada. Mas se é preciso apelar pelo seu lado caridoso
para lhe convencer de adotar o Carlos Augusto, que seja assim...
Neste
momento toca a campainha. Adriano vai atender. É seu pai, Luiz, que após os
cumprimentos, vai entrando. Cumprimenta Regina com um abraço, pois é grande o
carinho que tem por sua nora. Sentam-se no sofá.
-
O senhor aceita um café, seu Luiz?
-
Se você não se importa, Regina, prefiro uma cerveja. Isso é, se você tiver,
lógico.
-
Isto aqui em casa, por causa de seu filho. Vou buscar para o senhor. Você quer,
bem?
-
É, vou acompanhar meu pai.
Regina
vai até a cozinha e logo volta com as latinhas, entregando uma para cada um.
Abrem, fazem um brinde e começam a beber.
-
Mas me digam uma coisa. Um amigo meu me disse que viu vocês saindo hoje do
Fórum. Desculpem a minha curiosidade. Vocês estão com algum problema com a
Justiça.
Adriano
olha espantado para sua mulher, como quem pede ajuda para falar. Regina, com
jeito, toma a iniciativa de contar-lhe:
-
Sabe o que é seu Luiz. Nós estamos envolvidos no processo de uma criança que
queremos adotar...
-
Vocês estão brincando - engasga-se com a cerveja.
-
É verdade pai. A Regina se apaixonou por um bebê que ela conheceu e quer
adotá-lo de qualquer forma.
-
Mas vocês não estão em condições para isto no momento, céus...
-
Explica isto para ela - sugeri Adriano.
-
Não importa, seu Luiz. Estou bem decidida quanto a esse meu ato. O mais Deus
proverá!
-
Bem, que Deus tem poder para prover qualquer coisa, não tenho dúvidas. Basta
ter fé. Agora, quanto essa adoção, acho meio arriscado para o momento. Mas de
qualquer forma, é uma decisão que só compete a vocês, marido e mulher. Espero
que saibam a responsabilidade que estão assumindo. - Olha o Relógio. Tenho que
ir. - Levanta-se: - Até uma outra vez...
E
seu Luiz parte, sem querer dar uma opinião ou querer maiores detalhes sobre o
caso.
* * *
Dois
dias após estarem no Fórum, os agentes vão visitar a casa de Regina e Adriano.
Após os tradicionais cumprimentos, um deles diz:
-
Bem, estamos aqui para verificar as condições de vocês para ver se existe a
estrutura para se adotar o bebê. Começando, gostaria de saber a profissão de
vocês e os salários.
-
Sou bancário e minha esposa está se aperfeiçoando como assistente social
bolsista do Centrinho. A nossa renda mensal é de...
E
assim várias perguntas vão sendo feitas e respondidas. Os agentes também
verificam a casa e o ambiente para e anotam na ficha todos os detalhes do
ambiente a qual a criança irá viver.
Quase
ao fim da entrevista, Adriano se atreve a perguntar aos agentes:
-
Os senhores acham que eu e minha esposa temos as condições necessárias para
adotar o bebê?
-
É, vocês estão acima dos requisitos mínimos para adoção. Só que não podemos
adiantar nada, pois esta ficha de vocês será anexada ao processo e será o Juiz
de Menores que dará o parecer final.
O
outro agente toma a palavra:
-
Todavia, temos uma boa notícia para vocês. Estivemos hoje com a Dona Marta e
ela abriu mão definitivo do bebê, passando a guarda para o Juizado de Menores
encaminhá-lo para adoção.
Regina,
feliz pela boa notícia, abraça o marido como quem obtém a primeira vitória.
* * *
Três
dias se passam e Regina, confiante que tudo dará certo e tendo a colaboração de
seu marido, prefere ainda não questionar se ele mudou de ideia com relação à
adoção de Carlos Augusto. Até que naquela noite, o casal está deitado em sua
cama abraçados e sem assunto. Minutos após, Adriano rompe o silêncio com a
seguinte observação:
-
O Juizado de Menores está demorando em dar um parecer com relação ao nosso
pedido de guarda.
-
É assim mesmo. Essas coisas de Justiça são demorada...
-
Será que tem algum risco de não dar certo esse processo de adoção.
-
Acho que não. Até agora preenchemos todos os quesitos necessários.
-
Sei lá, confesso que estou com medo - admite Adriano.
-
Medo de quê, bem? - Admira Regina.
O
rapaz respira fundo e responde:
-
Sinceramente, agora eu também quero muito adotar essa criança. A sua carisma
Regina, contaminou-me. Estou apaixonado pela ideia de ter o Carlos Augusto
correndo aqui pela casa, fazendo arte, deixando você brava, fazendo gracinha e
aos domingos levar ele comigo ao campo e outras coisas...
Regina
com brilho nos olhos, vira-se rosto a rosto com ele, passa a mão acariciando a
sua face e diz com ternura:
-
Essa foi uma das confissões mais bonitas que já ouvi da tua boca.
E
se beijam.
* * *
Chega
o dia de irem novamente ao Fórum. Lá, passam pelo Juiz de Menores para
conhecerem o parecer do mesmo. Nervosos, ouvem calados, entre outras
orientações, o que lhe diz o meritíssimo:
-
Já analisei o pedido de adoção feito pelos senhores. Os dados a respeito do
casal me pareceram bastante favorável a este ato. Por isto, decidi lhes
conceder um termo de guarda provisório com duração de 180 dias. Esse período
servirá como um estágio de convivência. Ele se torna necessário para
analisarmos se a criança também se adaptará à família adotiva. Depois esse termo
poderá ser alterado ou concedido a adoção definitiva. Tudo dependerá da análise
da Justiça.
Felizes,
eles se abraçam para comemorar. Logo são encaminhados para a psicóloga do
Fórum, que lhe faz algumas perguntas para conhecer o estado psicológico do casal
e, por fim, lhes passa algumas orientações:
-
É importante também vocês buscarem informações médicas e conhecer o histórico
da saúde da criança que pretendem adotar. Saber se ela apresenta deficiências
ou é portadora de alguns vírus. Isso porque muitos casais, no momento da
adoção, estão emocionalmente envolvidos e não ligam para esses detalhes. Mas se
for levado em consideração essas informações, ligadas à adoção consciente,
serão importantes para que vocês tenham dados suficientes para cuidar da criança
da melhor forma possível. Como também,
facilitará a organização dentro de casa a fim de garantir a ela um eventual
cuidado específico com sua saúde.
-
Quanto a isto, a senhora pode ficar despreocupada, pois sou a assistente social
que cuida do caso dele já há três meses e conheço bem a criança que pretendemos
adotar.
-
Muito bonito o ato de vocês. Porém, outro cuidado também que eu gostaria de
repassar é com relação ao tratamento. Em geral, sensibilizados pela carência do
novo filho, muitos pais costumam superprotegê-lo, o que pode ser sinônimo de
discriminação. Os filhos adotivos devem
receber o mesmo tratamento de seus irmãos biológicos. Dessa forma, a integração
familiar será natural e positiva para as interrelações. Eu sei que no caso de
vocês será o primeiro filho, mas é bom que saibam disso também.
-
Pode deixar, tomaremos cuidados para que isto nunca ocorra - promete Adriano
sorrindo.
* * *
Alegres
pela guarda provisória de Carlos Augusto, eles chegam em casa. Regina lembra:
-
Esquecemos de algo, Adriano?
-
O que foi agora, Re?
-
Ainda esta semana o Carlos Augusto virá para casa e nós ainda não arrumamos o
quarto dele...
-
Poxa, é mesmo. Só que tem um detalhe, meu bem.
-
Fala?
-
Não quero desanimá-la, mas não temos dinheiro agora, pois estamos fora da época
de pagamento...
-
Verdade - concorda Regina, caindo no sofá, desanimada e pensativa. Logo depois,
sugeri: - E se nós pedimos emprestado à alguém e e pagarmos depois?
-
Já sei, tive uma ideia. Posso pedir emprestado para o meu pai e no pagamento
devolverei a ele.
-
Boa ideia, meu bem.
Naquele
mesmo instante, Adriano partiu para a casa de seu pai. Ambos foram ter uma
conversa reservada na sala de estar. Seu Luiz lhe fez uma pergunta direta:
-
Posso saber o que você está fazendo aqui esta hora, meu filho?
-
Sabe o que é pai, vim conversar com o senhor a respeito daquela criança que eu
e a Regina estamos adotando.
-
Mas vocês ainda estão insistindo nessa loucura...
-
Sim pai, estamos... Hoje o promotor da Vara da Infância e Juventude nos
concedeu a guarda provisória do bebê. Ainda esta semana ele virá para casa.
Então eu gostaria de saber se o senhor pode nos emprestar um dinheiro para
montarmos o quarto dele.
Seu
Luiz dá um suspiro e pergunta:
-
Você tem certeza do que está fazendo?
-
Sim pai, tenho...
-
Então espere aqui um pouquinho.
Seu
pai sai da sala e logo volta com um cheque assinado, estendendo-o para Adriano.
-
Toma. Só que tem um detalhe. Procurem comprar produtos de qualidade que poderão
ser reutilizados para um segundo possível filho, seja ele natural ou adotivo.
Adriano
pega o cheque e levanta-se.
-
Obrigado, meu pai. Pode deixar...
Ele
começa a andar para ir embora. Seu Luiz lhe chama:
-
Filho...
-
Sim?
-
Apesar de eu achar uma loucura tudo isto, a adoção é um gesto muito lindo. Esse
dinheiro você não precisa devolver. Tome como um presente para o meu futuro
neto. Parabéns!
-
Obrigado, pai - e sorri.
* * *
No
outro dia, Regina e Adriano compram a mobila. Como uma verdadeira revolução
doméstica, o cômodo onde está os presentes de casamento empilhados, o som, a
tábua de passar roupa, pôsteres e tantos outros objetos guardados, são
transferidos para outra parte da pequena casa. Pintado de azul claro, o quarto
recebe a colocação de uma cortina em algodão e border (papéis de paredes
infantis, circundando o cômodo). Almovadas abrem alas para o berço. A cômoda
com as roupas do futuro morador da casa. O guarda-roupa e a prateleira com os
objetos pessoais de higiene do bebê. E, após tanta dedicação e trabalho, o
quarto de Carlos Augusto está pronto para recebê-lo.
* * *
No
hospital, Regina está atendendo um caso, quando chega Ana Lú.
-
Já estou sabendo da novidade, Regina. Parabéns, fico contente por você e pela
sua coragem.
-
Obrigada, Ana Lú. Este é o novo desafio que tenho pela frente.
-
Pode ficar sabendo que será bem sucedida. Mas me conta. Quando você irá lavar o
bebê para casa?
-
Hoje mesmo. Depois do expediente o Adriano pegará o carro do pai dele e virá
nos buscar - responde feliz.
-
Então deixa eu lhe dar o meu presente. Considerando que dentro de poucos dias o
Carlos Augusto irá passar pela primeira cirurgia, vou lhe liberar um mês para
você poder dar uma maior atenção a ele e também se acostumar no papel de mãe.
-
Poxa, realmente você é uma amiga. Obrigada - agradece se levantando e abraçando
a sua chefe.
* * *
À
tarde, como combinado, Adriano chega à portaria do hospital com o carro de seu
pai. Regina já está a esperá-lo com o Carlos Augusto em seus braços. O rapaz
não hesita em descer, pegar o bebê no colo e beijá-lo para demonstrar a alegria
de recebê-lo como seu filho. Logo partem.
Ao
chegar à frente de sua residência, Adriano abre a porta e Regina entra com a
criança no colo, dizendo:
-
Aqui será o seu lar à partir de agora. Você manda e desmanda no seu reino, meu
reizinho.
-
Só não faz muita bagunça, senão apanha do papai - brinca Adriano.
-
E nem vai fazer arte que hoje a mamãe arrumou toda a casa, viu? - Ri Regina.
Após
a janta, Carlos Augusto não quer dormir. Seus pais estão no sofá brincando com
ele, quando toca a campainha.
-
Deve ser o meu pai que veio buscar o carro. Deixa, eu vou atender.
Seu
Luiz vai entrando todo alegre.
-
Eu vim conhecer o meu neto. Onde está ele?
-
Está aqui no meu colo rindo para todo mundo - responde Regina.
-
Deixe-me ver... - pede o pai do rapaz que ao ver Carlos Augusto de frente, tem
uma mudança brusca: - Mas esse garoto de problema...!
-
É apenas uma fissura labiopalatal, pai. No hospital onde Regina trabalha há
milhares de casos como o dele. Com o tempo o problema será removido e ele
ficará perfeito.
-
Pode acreditar, seu Luiz. Isso é apenas temporário. Nós nos apaixonamos por ele
e faremos de tudo para que tenha uma vida perfeita.
-
Vocês além de cometer a loucura de adotar uma criança tendo problemas
financeiros, ainda querem bancar os heróis pegando uma com problema. Hum!,
francamente, isso só poderia partir da cabeça de uma assistente social. Vou me
embora...
Seu
Luiz sai sem se despedir. Adriano reconhece:
-
Nós deveríamos ter contado antes...
-
Infelizmente as pessoas são assim mesmo. Veem a aparência física acima do ser
humano... Vamos ter que estar preparados para situações preconceituosas como
esta, Adriano.
Depois
de algum tempo mudo, ele exclama:
-
Só que tem uma coisa, Regina.
-
O que foi, bem?
-
O preconceito social é forte. Mas nós seremos mais do que ele!!!
-
É assim que se fala - alegra-se Regina, beijando o marido.