GIROS DO MUNDO - Emílio Figueira / Jan. de 2001 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,50
A rotina daquele homem era sempre, após um longo dia de trabalho em pé como atendente de farmácia, chegar em casa, mal cumprimentar sua esposa e os dois filhos pequenos, se jogar no sofá e ligar a televisão. Uma força maior o puxava para assistir por horas àqueles Programas de Jornalismo Policial. Verdadeiros espetáculos circenses (não querendo ofender os reais profissionais do circo!), onde os apresentadores pareciam chamar os telespectadores de imbecis de tanto que gritavam, pulavam e exibiam-se como se fossem os verdadeiros donos da verdade.
Com o tempo, esse homem, ao andar pelas ruas e sentir que alguém tentava falar consigo, suas mãos gelavam, sentia pânico e tinha taquicardia. De tanto medo, no transporte coletivo não conseguia nem ler o jornal, perdia a concentração.
Resolveu parar de usar o transporte público e ir trabalhar com o seu velho carro de mais de vinte anos. Ao parar nas luzes vermelhas, lembrava-se das muitas reportagens do crescente aumento de roubos a carros parados em faróis, onde os motoristas tentavam se livrar como podiam da ameaça. Mesmo sem ter ar-condicionado em seu velho carro, o homem estava sempre de vidro fechado, não deixando ninguém andar consigo com o vidro aberto. Sempre precavido, até mesmo se ia dar dinheiro para o malabarista ou para uma criança, abria só um pouquinho a janela.
Certo dia, o atendente de farmácia estava de frente à uma prateleira arrumando-a. Uma freguesa chegou em silêncio, encostando subitamente a mão em seu ombro para pedir uma informação. Ele, por estar distraído, deu um pulo e grito de susto, com medo de uma agressão. Depois, sem graça, pediu desculpas à cliente.
Sentia-se casa vez mais atraídos pelos Programas Policiais que pegavam a desgraça e o sofrimento alheio e faziam deles o maior sensacionalismo. Muitos deles em canais de emissoras pertencentes a igrejas evangélicas, mas que só exibiam essas coisas do mal. Em um misto de espetáculo e fatos ruins, esses apresentadores iam implantando coisas negativas nas mentes das pessoas. Essas sem perceberem, tinham a mente cada vez mais recheado de medos e pavores. Sensações que as aterrorizavam no dia a dia. Implantando em seus inconscientes o excesso de medo exacerbado, infundado, que podiam desencadear distúrbios mentais, neurose, paranoia a síndrome do pânico e, como consequência, causava até transtornos físicos --como úlcera, taquicardia, hipertensão e tensão muscular, queda da resistência e aumento de quadros infecciosos.
De repente, esse homem chegou um dia em casa com pá, enxada outras ferramentas e materiais de construção. Pediu à esposa que o ajudasse a retirar todos os móveis do quarto de seu filho menor. Com medo que sua família fosse assaltada em sua própria casa, o homem começou a quebrar o chão para construir um "bunker", uma espécie de câmara secreta inviolável utilizada como abrigo em caso de invasão de criminosos.
Era melhor pecar pelo excesso de prevenção, vivendo em uma "ilha" cercada de arames farpados e câmeras de segurança, do que manter um nível razoável de relacionamento social, saindo à noite e até abrindo a janela do carro para dar dinheiro a um pedinte. As pessoas eram induzidas a tomar medidas preventivas que, com o tempo, passam a ser automáticas, assim como escovar os dentes.
Na sociedade sempre existiu uma linha muito tênue que separa a precaução do medo da violência, cujas atitudes extremas, porém não incomuns, levam o cidadão a se privar até de seu direito de ir e vir. Coisas que a muitos anos vinham sendo alimentados por esses Programas Policiais, levando a sensação seus telespectadores a todo instantes estarem sujeitos a ser as próximas vítimas das desgraças assistidas na televisão. Isso para algumas pessoas tornava-se até patológico, temiam contatos sociais, não sair mais de casa com medo.
Por outro lado, os telespectadores desses Programas Policiais também lembravam os antigos romanos que iam ao Coliseu divertir-se vendo pessoas serem devoradas pelos leões. Só que atualmente, sentavam-se em seus sofás e assistem confortavelmente a desgraça alheia.
O que havia de bom nisso? O que ganhavam de bom com isso? Todo um mercado em alta em qualquer comunidade com níveis altos e constantes de violência, a indústria do medo era lucrativa: blindagem, segurança particular ou comunitária, grades, armas e munição, mesmo no mercado paralelo. Crescia a paranoia e a neurose. O Estado não dava conta e a pessoa ficava cada vez mais agressiva.
A mesma paranoia que levou o atendente de farmácia a comprar um revólver 38 no mercado negro e esconder de sua família em cima da alta estante da sala. Ali seria um lugar estratégico caso ele precisasse.
Em um sábado à noite, as crianças estavam brincando no quarto. Sua esposa pediu uma pizza e foi tomar banho, esquecendo-se de avisar ao marido.
Meia hora depois, o homem estava sozinho na sala vendo seus Programas Policiais. O entregador chegou de bicicleta. Como já conhecia a família, entrou pelo portão e bateu de leve à porta. O homem interpretou o som como se alguém forçasse a maçaneta como se fossem assaltantes. Aumentou sua pressão e sudorese. Ficou ansioso com taquicardia, desencadeando uma a síndrome do pânico instantânea.
Levantou-se soando bem devagar, pegou a arma em cima da estante, foi caminhando lentamente à porta e, sem abri-la, segurou o revólver com as duas mãos com firmeza, estilizando todo o vidro ao descarregar seis tiros no rapaz...