O GRANDE PAI

CAMINHO DA LUZ - Emílio Figueira / Primeiro semestre de  2000 - Técnica: Guache sobre cartolina - Med.: 0,25 x 0,34


  Descendente de uma tradicional família paulistana, àquele gerente de banco estatal era um grande conservador, defensor da manutenção das instituições, de uma ideologia política ou moral, que acreditava que o governo e a sociedade possuíam um papel em encorajar e estimular os valores ou comportamentos que consideravam tradicionais. Morando em uma casa com todo o conforto com sua esposa, uma dona de casa recatada que, mesmo tendo empregada, cuidava da maior parte dos afazeres domésticos, principalmente de lavar e passar roupas e de preparar e servir as refeições.

Eles tinham dois filhos, a menina de doze anos e um menino de nove, o Alexandre Antônio. Ambos estudavam em um dos colégios mais tradicionais e moralistas da cidade. Quase não podiam brincar com outras crianças, principalmente na rua. Muitas vezes, durante as tarefas e estudos à tarde, olhavam pelo vidro a molecada divertindo-se lá fora. 

Em casa, a educação era bem severa, principalmente por parte do pai. Muitas vezes, após a janta, sentavam-se todos à sala, sem ligar a televisão. A mãe costurando, as crianças brincando, mas sem poder fazer barulho para não interromper a leitura do jornal de seu pai. Por várias vezes, esse fazia comentários em voz alta, criticando duramente o pessoal de esquerda por gostarem da diversidade, de ter raças diferentes, preferências sexuais mais livres, do colorido, do cosmopolita, a questão da virtude, do comedimento, da experimentação, da inovação, da ruptura com usos e costumes.

Alexandre Antônio admirava seu pai, o modo que ele expressava suas ideias, pregava com rigidez os preceitos de retidão moral. Até que, no início de sua adolescência, o velho matriarca da família morreu subitamente de infarto. O que foi uma dor insuportável àquele jovem. Uma dor e a confusão emocional que era lidar com essa ausência. Vários sentimentos como tristeza, raiva, saudade, frustração, impotência, solidão, misturavam-se em uma coisa só, que chegava a doer fisicamente.

A memória dele continuou a ser a maior e única referência de super-herói de Alexandre Antônio. Mesmo passado uma década, o rapaz, em suas conversas, sempre tinha uma citação a ele, dizendo: “Como dizia meu pai...”

O país estava sendo governado pela esquerda, considerado por muitos como um pai imaginário social, essa função paterna surgiu de duas formas distintas, pelo paternalismo favorável e assistencialista nas figuras como pai dos pobres. Isso era odiado por Alexandre Antônio, que usava suas redes sociais para atacar quase que o dia inteiro o governo. Sempre acompanhado pelo seu cachorro que era quase um cão de guarda, um cachorro leal que protegia a sua família e muito obediente, mais ligado à proteção, aos perigos do mundo.  

Por várias vezes, lembrava-se do que seu pai pregava a importância da identidade, “estarmos entre nós, formarmos o nosso grupo”. Que poderiam até aceitar, eventualmente, conviver com o diferente, mas não se sentiam confortáveis em integrar o diferente e, de fato, compartilhar muito com o diferente, ainda que admitam que o diferente tenha direito a existir, a votar, etc. 

Com o tempo, o governo se envolveu em grandes escândalos de corrupções, como os demais anteriores. Alexandre Antônio viu ali a grande chance de atacar esses dirigentes que priorizavam a ideia da compaixão, da justiça social, da ajuda, de proteger os fracos, dos subsídios, etc. Onde a questão da justiça era algo não ligado por merecer em função do que a pessoa produzia, mas merecer em função do seu empenho. O contrário que seu pai dizia, que a compaixão também era importante, mas restrita à compaixão dentro do seu próprio grupo, tendo uma escala e outro nível de prioridade. Onde a justiça era percebida mais como uma meritocracia: “você receberá em função do que você contribuiu”. 

No rapaz, como em muita gente, surgiu uma tendência maior a enxergar o outro como algo que tinha que ser excluído ou viver em paralelo. Tanto nele, como em muitas pessoas conservadoras, estourou-se um grande sentimento de ódio. Como no mito egípcio da Deusa Leoa, ao longo da história, as civilizações sempre criaram os mitos de redentores que falam de período de desolação por falha moral do homem. Porque se perdeu o porquê. Perdeu-se o sentido de vida. O homem torna-se lobo do próprio homem. Destruidores da própria condição humana. Primeiro no plano metafisico. Depois no plano físico. Nesses momentos onde as inseguranças pessoais e coletivas são incrementadas, começam os movimentos de expressão desse ódio. O desejo de se bater em todos os tipos de minorias, um ciúmes inconsciente por sentirem que essas pessoas são privilegiadas, não por serem pobres, mulheres, refugiados, negros, gays e tantas outras classes em desvantagens, mas por serem privilegiadas pelo Pai Estado. 

Nesse contexto, surgiu um candidato oportunista com grande discurso sofista de direita, prometendo em desfazer as injustiças e consertar o que estava “errado”. Com discurso de ódio, dizendo o que seus apoiadores queriam exatamente ouvir. Pessoas que não se reconheciam violentas e agressivas e sim reagindo a agressão do outro, por exemplo, as chamadas minorias. Para Alexandre Antônio era muito perigoso abrir mão dos tabus, das regras, da santidade, da pureza, e aceitar coisas consideradas por esse grupo como devassas, promíscuas, hedonismo desabrigado, as orgias, a infidelidade, romper com usos e costumes, porque tem um temor de que isso leve à decadência e desagregação social, ao caos e a grandes problemas sociais.

O moço, assim como seus pares, empurrados por um sentimento de impotência, começaram a projetar nesse candidato ideias de poder no outro, no MITO. Era um grande fenômeno psicossocial que falava mais do povo do que de um salvador da pátria. Para Alexandre Antônio, esse mito apareceu como uma figura paterna, com seus elementos da lei, com as configurações da ordem, da proteção e do amparo, de alguém que olhava para nossas carências emocionais ou sociais de coletividade. Tornou-se para Alexandre Antônio a figura substitutiva de seu próprio pai já falecido. O SALVADOR, aquele que redimiria, instauraria um estado de pureza que já existiu, do qual ele sentia saudade e que era melhor para si. 

Era a figura do seu próprio pai projetada naquele político sofista, como se voltara para acabar com tudo que era ruim, que dava medo e que remetia ao desamparo de suas impotências inconscientes. A volta do pai severo e quem todos deveríamos obedecer contra um pai complacente e permissivo, que tudo permitia.

O candidato venceu as eleições. Sentimentos rebrotaram em Alexandre Antônio, coisas que não sentia desde a morte de seu pai. O novo presidente era a nova figura paterna que simbolicamente lhe protegeria. Como ele, muitas pessoas agarravam-se nele como se tudo fosse ser resolvido pelo ídolo em um passe de mágica. O ser humano sempre procura se agarrar em falsas ilusões de salvação instantâneas. Exemplo, foi assim com o Bezerro de Ouro na Bíblia. 

Só que, historicamente, esses ídolos têm vidas curtas. Inanimados, não respondem ao nível das expectativas que as pessoas depositam neles. Se forem humanos, arrebentam-se por suas próprias ações, pois nenhum de nós somos perfeitos para corresponder às expectativas que nos depositam. Ao tomar posse, o presidente já começou a fazer tudo diferente do que dizia em seus discursos sofistas de campanha, cuidando descarada e exclusivamente de seus próprios interesses, aliando-se e distribuindo cargos para velhas raposas da política. Passou a ser duramente atacado pela imprensa e população.

Alexandre Antônio entrou em estado de Negacionismo, uma escolha de negar a realidade como forma de escapar de uma verdade desconfortável. Diversas formas de negacionismo possuem o denominador comum da rejeição de evidências maciças e a geração de controvérsia a partir de tentativas de negar que um consenso exista. Esse era um comportamento provocado por diversos motivos, como crenças religiosas, proveito próprio, como no caso de políticos que negam fatos para não terem que lidar com eles, ou como um mecanismo de defesa contra pensamentos perturbadores que poderia destruir o “Mundo de Poliana” que Alexandre Antônio criou para si.

A vida do rapaz era defender seu novo “pai” dia e noite em redes sociais. Muitas vezes, nessas redes, somos catequistas porque somos infantis. Na política, por exemplo, a democracia é boa sempre que consagra nosso candidato e a minha visão do mundo. Se esse candidato for diferente ao nosso, dizemos que a democracia é deformada ou manipulada quando diz o contrário dos nossos desejos. Política não se trata de pensar a realidade, mas adaptá-la ao nosso bel prazer. E quando alguém precisa defender freneticamente alguma ideia, pessoa, grupos, ideologias, posições, é porque, inconscientemente, nem ele tem convicção do que defende, temendo se auto decepcionar!

Um ódio que falava muito suas ações e pouco do objeto que o rapaz odiava, do seu medo da semelhança. Seus ódios inconscientes eram mais venenosos do que os externos. Alexandre Antônio odiava não porque sentia a total diferença ao pessoal que se opunha ao seu presidente, mas porque temia ser idêntico a eles. Podia perdoar muita coisa, menos o espelho perturbador que revelava as coisas que tentava esconder. Assim como para o rapaz, para muitos, as redes sociais se tornaram grandes divãs coletivos dessas pessoas com posições cada dia mais narcisistas, onde ódio e o egoísmo revelava-se a grande raiz de todas as limitações humanas...

Assim como em governos passados, o atual mergulhou-se em grandes escândalos de corrupção. Foi cassado pelo impeachment. E mais uma vez as pessoas que depositavam confiança e alívios de suas dores psíquicas, sofreram o vazio da decepção depositada no ídolo, no mito, no salvador da pátria. Aliás, Cazuza bem disse, “meus heróis morreram todos de overdose!”

Alexandre Antônio reviveu toda a dor da morte de seu verdadeiro pai. Era novamente a dor de perder alguém, aquela que dói na alma, aquela que não passava, só era amenizada, mas que sempre seria lembrada. Como era doloroso perder alguém que se amava na vida real ou no mundo simbólico. Eram tantas as lembranças e a saudade que, às vezes, o coração parecia bater e sofrer como se estivesse apanhando. 

E para tentar deslocar essa dor e vazio, tempos depois, Alexandre Antônio saiu pela vida e pelas ruas à procura de um novo “pai substituto”.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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