O POUSO DA BORBOLETA REAL

A BORBOLETA DEFICIENTE - Emílio Figueira / Março de 2000 - Técnica: Guache sobre papel cartão

 

“Poxa, que dia cansativo!”, exclamou a si mesmo o rapaz entrando em seu apartamento, depois de um longo dia de trabalho e muito trânsito. Trancou a porta, colocou sua pasta de documentos em cima do sofá. Afrouxou a gravata, retirou o paletó, desabotoou os pulsos da camisa e dobrou as mangas. Foi para cozinha preparar alguma coisa para comer, pois morava sozinho. Arrumou um rápido lanche, pegou na geladeira uma garrafa de refrigerante já pela metade, sentou-se no banquinho perto da pia e alimentou-se por ali mesmo. Voltou à sala e olhou o que poderia fazer, já que ainda era muito cedo para ir se deitar. Ligar a televisão não, pois iria ver os mesmos conteúdos de sempre e os telejornais noturnos só repetem as matérias que já foram exibidas durante o dia. No rádio, era hora da “A Voz do Brasil”. Olhou o computador no canto da sala e decidiu navegar um pouco na internet. Depois de algum tempo, viu o anúncio de um desses sites de namoro e sentiu vontade de entrar para conhecer. Conquistado pelos apelos publicitários, imagens sedutoras e mensagens de suposta felicidade, quando deu por si já estava cadastrado.

Começou a sentir-se bem, talvez cativado por tantas fotos femininas. Inicialmente, pensou que aquilo era como a vitrine de uma loja, na qual as pessoas estavam ali expostas como uma mercadoria para serem escolhidas. Parou um pouco achando aquilo muito esquisito, mas as fotos pareciam sorrir para ele. Voltou a clicar e a ler os perfis das moças. Alguns perfis interessantes, outros engraçados, até que chegou à foto de uma morena com o codinome “Borboleta Virtual”, que lhe despertou à atenção. Começou a ler sua descrição e a envolver-se ainda mais, identificando-se com os dados descritos por ela. Sentiu ser que era uma pessoa séria, estudada, educada e fina. Um desejo ainda maior levou-lhe a escrever uma mensagem: “Oi, Borboleta Virtual, gostei muito do seu perfil, podemos conversar para nos conhecermos melhor?”. Um clique e a confirmação de “Mensagem enviada com sucesso!”

  Desligou o computador e foi deitar-se. Ligou a televisão, mas não teve concentração, pois pensava na Borboleta Virtual. Quem realmente era essa moça? Onde ela morava, como era o seu cotidiano, sua vida? Por que ela ainda estava solteira? Será que ela já tinha tido muitos ou poucos relacionamentos? Será que ela era uma pessoa bacana, meiga, delicada, companheira? Será que ela era chatinha, brava, mandona, egoísta? Como deve ser a sua família? E seu modo de se vestir, seus gostos, hábitos, rodas de amigos e colegas de trabalho? “Será que ela gostará de mim?”, questionou-se em voz alta. Será, será, será, será, será, será? E, entre tanto serás, adormeceu. Na manhã seguinte, o despertador não teve utilidade. Ele acordou antes, sem preguiça de se levantar. Arrumou-se rapidamente para ter tempo de ligar o computador e conferir se a Borboleta Virtual havia-lhe respondido, mas nada! Sentiu-se um pouco frustrado. Saiu e passou pela padaria para o seu tradicional café da manhã. Enquanto comia uma boa média de pé no balcão, olhava para toda a padaria para ver se ela estava por ali, talvez um gesto inconsciente, mas, novamente, frustração.

Foi para o trabalho e, perto da hora do almoço, olhou para o telefone. Sentiu vontade de telefonar para a Borboleta Virtual, talvez mandar um e-mail e perguntar como estava sendo o seu dia. Mas que loucura, questionou-se: “Como pode sentir vontade de ligar ou escrever para alguém que ele nem sabe se era real?” Aliás, a Borboleta Virtual poderia não existir, um perfil falso como milhares de perfis que circulam hoje pela internet. Mas não, alguma coisa dizia ao seu coração que ela era real! No restaurante da grande empresa em que ele trabalhava, a fila para se servir estava grande. Enquanto ele esperava, viu uma moça com o perfil próximo ao dela, pegando sua bandeja e indo para sua mesa. Acompanhou-a com os olhos, pegou sua bandeja e se atreveu a ir até onde ela estava. Lá, perguntou-lhe num sorriso:      

– Posso me sentar com você, Borboleta Virtual?

  Outro homem, também com bandeja, respondendo pela moça, disse-lhe:

  – Só que essa Borboleta já tem um botânico, camarada!

Ele pediu desculpas e saiu sem graça! Voltou minutos antes do fim do horário do almoço para sua mesa de trabalho. Mesmo contrariando as normas de empresa, acessou o seu e-mail pessoal para ver se a Borboleta Virtual tinha-lhe respondido. Nada… E, pela frente, uma tarde melancólica. Mas tratava-se de uma melancolia que nem ele mesmo sabia o motivo. Depois de um dia de expediente, retornando ao seu apartamento, ah, como o rapaz queria que ela fosse real. Desejava que ela o recebesse com um beijo, um jantar quentinho, conversassem bastante sobre as coisas do dia, sentido parte da vida um do outro. Assistissem à televisão abraçadinhos no sofá, tomassem banho juntos, namorassem no quarto e, depois, dormissem juntos, de tal modo que fosse possível ouvir o coração um do outro. Na manhã seguinte, tomariam o café, comentando os afazeres do dia…

Como ele queria que ela fosse real! Poderem ir para restaurantes, cinemas, teatros, casas de amigos, sair para dançar. Fazerem compras, supermercado. Fim de semana, irem à residência dos pais dela ou viajarem para a casa dos pais dele numa pequena cidade ali por perto. Estarem juntos nas festas de fim de ano, ouvirem suas músicas preferidas, planejarem e progredirem juntos pela vida. 

Deixando a pasta em cima do sofá, foi direto ligar o computador. Ainda nada de resposta. A Borboleta Virtual ainda não era real! Pensou em ver outros perfis, enviar outras mensagens para outras moças, mas não. Seu coração pedia por ela!

  Ao se deitar, pensou: “Será que a Borboleta Virtual já encontrou alguém e por isto nem entra mais no site para me responder? Será que ela já está namorando e tendo, neste momento, uma noite de amor? Será que nem terei uma chance, ela já escolheu outro?” Loucura… Ele estava sentindo ciúmes de alguém que ele nem sabia que existia. Ali na cama, lembrou-se de um velho ditado popular: “Antes de sair por aí correndo atrás das borboletas, dedique-se a cuidar do seu jardim, pois quando ele estiver pronto, as borboletas virão naturalmente!” Esqueceu-se um pouco da Borboleta Virtual e começou a pensar em sua vida, que tinha construído algo. Uma carreira dentro de uma boa empresa, um bom salário, apartamento próprio, poupança e aplicações bancárias. De certo modo, o seu jardim já estava bem cuidado, mas as borboletas não vieram. Nem sequer via e-mail.

Neste mesmo momento, pensou em si. Ele sempre foi um cara de atitude e, como era uma borboleta que desejava para sua vida, era hora de sair à caça! No dia seguinte, antes de sair de casa, checou sua caixa de mensagem no computador. Nada… Mas ele estava decidido a ir à caça! Na hora do almoço, a secretária de seu departamento sentou-se junto a ele. Os dois almoçavam a sós naquela mesa. Conversa vai, conversa vem, ela teve coragem de perguntar:

  – O que você acha de tomarmos um chopinho hoje?

– Você me pega de surpresa…

– Surpresa por quê? Eu sempre quis conhecer você um pouco mais.

– Poxa, você é direta. A típica mulher moderna… - Comentou sorrindo.

Era sexta-feira, saíram para um chopinho no final de tarde. No sábado, ele a buscou para jantar e, no domingo, já estavam namorando. Passaram o dia todo juntos e foi tão gostoso. À noitinha, ao deixá-la em frente de sua casa, a recém-namorada lhe disse:

– Não se esqueça que amanhã temos a reunião mensal de metas. Ontem à noite, depois do nosso jantar, mandei para o seu e-mail a minuta da ata anterior.

– Sim, darei uma olhada ainda hoje. Boa noite, querida!

Dirigiu-se pelas ruas encantado. Parecia ainda não acreditar no momento que estava vivendo. Estava muito feliz e encantado com ela. Ao deixar o carro na garagem de seu prédio, ele subia pelo elevador quando raciocinou: “A borboleta sempre esteve no meu jardim. Só eu não havia percebido!”. Entrou em seu apartamento, tirou o casaco e foi acessar sua caixa de mensagens para dar uma olhada na minuta da ata. Dentre outras mensagens, um em especial lhe dizia: “Oi, muito prazer. Claro que podemos conversar para nos conhecermos melhor. Fico lisonjeada por isso. Beijos da Borboleta Virtual!”. Ele não teve dúvidas. Acessou sua conta naquele site, foi aos seus dados pessoais e escolheu a opção “excluir o meu perfil”. O programa lhe fez a mesma pergunta idiota de sempre: “Tem certeza que você quer fazer isso?” Sim, ele tinha certeza. E sua certeza agora era a sua Borboleta Real que pousou em seu coração!

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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