UMA MOÇA GUARAÇAIENSE

VISÃO PRIMITIVA DO JARDIM GUARAÇAIENSE - Emílio Figueira / Mar. de 2001 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60


  O dia ainda não havia começado. Contemplando o céu estrelado, o carro estava em alta estrada. O velocímetro aumentava a cada momento com a atenção concentrada de seu motorista. Algo o incomodava e, ao mesmo tempo, o fazia feliz. Estava indo ao encontro de seu passado. Iria encontrar muitos amigos de infância e adolescência. Companheiros de aventuras e muitos segredos guardados.

O dia chegou e, com ele, o sol. Ligou o rádio e sintonizou numa FM Sertaneja para entrar no clima da região. Uma canção antiga, do tempo que ainda morava lá, iniciou-se no alto-falante e despertou no rapaz muitas saudades de sua juventude. Ele sabia que dentro de poucas horas estaria recordando tudo pessoalmente. Um medo momentâneo bateu ao imaginar como seria recebido e o que teria de enfrentar, mas a ansiedade de reviver tudo novamente tratou de afastar esse medo.

Chegou ao trevo da cidade e saiu da rodovia, momento em que se deu conta que, dentro de mais alguns quilômetros, entraria no centro dela. Enfim, estaria de volta àquela cidade que um dia abandonou em busca de outros céus, isso depois que tantas estações se passaram. Talvez um arrependimento batesse naquele momento ou talvez não... Porém, ao entrar no município, por enquanto, não quis atravessar uma das ruas principais, a João Machado de Souza. Preferiu pegar uma rua mais deserta e ir direto à casa de um grande amigo muito estimado, mesmo sem saber se ele ainda morava no mesmo lugar. 

Ao chegar ao portão, buzinou e logo viu um rapaz alto e gordo sair do interior da residência para ver quem chamava. Quase não se reconheceram.

– Fala, meu velho e bom companheiro – o regressante gritou da janela do carro ao amigo que abria o portão. Este, por sua vez, reconheceu-o pela voz, pois a aparência estava bastante mudada.

– Ora, parece que quanto mais rezo, mais assombração me aparece! – exclamou o amigo abrindo um sorriso. Não hesitaram em trocar um forte e demorado abraço: – Nossa, como você está bem, tem até carro do ano.

– Você também não está nada mal. Depois que estudou Direito, até criou barriga. Está com os burros na sombra.

– É a tranquilidade da cidade pequena, é a paz guaraçaiense.

– Pelo que vejo, pela a ausência da aliança em suas mãos, você ainda não se casou, meu caro doutor.

– Deixa isso quieto, depois a gente vê – respondeu o amigo com o seu velho ar de gozador.

– É, pelo jeito você continua enrolando a coitada. Cuidado, pois ela pode votar o seu “impeachment” e quem assume é o vice!

Juntos deram uma gargalhada.

Já na sala de visita, a conversa continuava. O recém-chegado quis saber de alguém que também era um dos seus melhores amigos.

– Bom, agora me conte como vai o seu primo.

– Vai muito bem. Agora é sargento da PM.

– Não, apenas continua somente “indo ao serviço”.

Novamente as risadas. Foi convidado a dar uma volta pela cidade. Logo que saiu da residência estando acompanhado do amigo, deu de cara com a escola que estudou no passado. Muitas recordações vieram à sua mente. Continuaram a andar e, chegando à frente do novo prédio da Prefeitura, adentraram na rua Dona Alcides. Ali, algumas modificações. Novas e bonitas lojas, os mercados haviam mudado de proprietários, mas as tradicionais casas comerciais continuavam lá. Encontrou velhos conhecidos e muitos abraços foram trocados. Quantas recordações...

Só que a surpresa maior estava reservada para mais tarde, momento em que ele resolveu dar uma volta naquela noite carnavalesca. Juntamente aos amigos, andaram pela “velha” praça que agora estava toda remodelada. As plantas, os bancos e a fonte pareciam despertar dentro de si nostalgia de algo, mas não sabia o quê. Quis tomar cerveja na Aquarius, a principal lanchonete da cidade. Porém, ao passar pelo “pau do fuxico” na esquina do Guaraçaí Clube, novamente sentiu aquela sensação nostálgica!

Na lanchonete, outros velhos conhecidos, outras histórias para ouvir e contar. Até que o som anunciou que o carnaval estava começando. Animou-se em ir até o Clube. Ao atravessar a rua, cumprimentar alguns conhecidos da PM que estavam de plantão ali, desceu as escadas do Clube, dando de cara com uma moça... Seu velho amor, embora tenha sido uma coisa platônica em seu passado.

O que não faltou foi o choque interno ao revê-la. Estava tão linda. Alta, corpo franzino, cabelos castanho-claros compridos e ondulados. Rosto magro e angelical. Pele clara e macia como pluma. Olhos castanhos e atraentes. Nariz pontudo e compridinho. Boca média que sempre se abria num vasto sorriso. Pescoço fino que levava até os ombros, onde se iniciava a extensão de seus longos braços, chegando as suas pequenas e delicadas mãos. Seios pequenos e firmes. Cintura esbelta. Pernas lisas e compridas completavam seu provocante corpo de mulher. Usava uma blusa roxa, short jeans, tênis e meia, uniforme típico de uma foliona carnavalesca. Linda com o seu jeito de pessoa delicada e erudita.

Durante aquela noite, ele a perseguiu com os olhos, sem ao menos ter coragem de ir conversar com ela. Nem sequer, tentou flertá-la.

– Que foi, cara? De repente você ficou quieto?

– Nada não, acho que estou cansado.

As horas foram passando naquela tortura mental e sentimental. “É desconcertante rever um velho amor”. Esse verso de Tom Jobim nunca teve tanto peso como naquele momento. Pediu licença, foi à praça e, sozinho, sentou-se num banco, recordando aquele amor que nasceu na época da escola. Olhando a tranquilidade daquelas plantas regadas pelo orvalho, autocondenou por não ter lutado no passado por aquele sentimento. Porém, naquele momento percebeu o quanto errou e, diante de seu conflito-psíquico, sentiu-se um ser incompleto.

Mas ele, que ficou longe depois de tantos anos, estava ali novamente. Por que não tentar? Sim, ele, num sorriso, decidiu. Porém, ao se levantar para voltar ao Guaraçaí Clube, a viu passar na rua sozinha em seu Fusquinha bege. Certamente estava indo embora. Tarde demais. Talvez não encontrasse outra oportunidade, visto que partiria no dia seguinte, pois o dever e sua rotineira vidinha o chamavam. Só outra chance era o que ele gostaria de ter!

Caiu novamente sentado no banco. Seu amigo chegou sozinho, sem a sua noiva, perguntando o que havia acontecido. Ele apenas o olhou e o advogado deduziu:

– Já sei, você a reencontrou.

– É, foi... Estava aqui recordando o passado. Sabe? Primeiro a vi no tempo de escola. Ela era uma professora estagiária assim como eu. Depois, a vi num sozinha num canto num baile. Entre toda aquela bagunça, a imaginei dançando somente para mim e, durante toda a noite, a contemplei durante todo o momento com encanto e desejo. Um dia, perambulando pela rodoviária, a vi embarcando no ônibus. Linda, de vestido marrom-claro, salto alto. Nas mãos, o material de professora e, mais uma vez, apenas a olhei. No meu último réveillon aqui na cidade, ela estava bela, vestido tomara que caia vermelho e meias de seda preta.  Um sorriso, um olhar! Cabelos soltos e rosto de menina-moça ingênua. Fiz de tudo para me apresentar a ela. Nós demos as mãos e, olhando nos olhos, vi naquele momento que havia me apaixonado por ela... Isso carreguei por todos esses anos. Mas agora é tarde! – ele exclamou num suspiro.

As horas passaram, o moço tinha que partir. Na despedida do amigo, não disfarçou a tristeza, embora tenha jurado voltar um dia para tentar realizar o seu sonho. Algumas lágrimas rolaram, mas ele tinha que se concentrar no volante. Passou pelo trevo, deixando sua história, seu passado e seu coração sepultado naquela pequena cidade.

Quase chegando à entrada de Mirandópolis, viu ao longe um carro no acostamento que parecia estar em dificuldade. Ele, que sempre foi solidário e atencioso com o próximo, sentiu que não poderia deixar uma pessoa sozinha ali, ainda mais numa rodovia deserta. Ao parar, qual não foi a sua surpresa! A jovem e bela professora guaraçaiense, ali sem ninguém, disse-lhe num aconchegante sorriso:

– Graças a Deus que você parou. O pneu do meu carro furou e estou bastante atrasada. Será que você pode me ajudar a trocar?

* * *

Um ano se passou... Enfim, chegou novamente fevereiro. Com ele, como diz Chico Buarque, o povo teria “direito a uma alegria vulgar, uma enorme epidemia que se chamava carnaval, carnaval, carnaval!”.

Ele, o rapaz guaraçaiense desbravador da cidade grande, estava novamente na estrada indo, literalmente, ao encontro de seu passado. Ao chegar à casa de seu velho amigo advogado, os abraços e as primeiras cervejinhas foram inevitáveis. Mas a ansiedade estava no baile de logo mais à noite. Afinal, os embalos carnavalescos, como sempre, prometiam.

No Guaraçaí Clube, muita animação: “Colombina, onde está você? Eu vou dançar o iêêê”. Quantos amigos, quantos conhecidos e quantos abraços. Cachaça também não faltava: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar. Passo a mão no saca-rolha e bebo até me afogar!”. Mas, de repente, o encontro tão desejado.

“Já está fazendo um ano, foi no carnaval que passou...”

Era ela, a moça guaraçaiense! Estava linda como sempre. Do mesmo jeito de como ele a deixou no último carnaval. Naquele momento, brincava sozinha!

Ao olhá-la, um brilho habitou seus olhos. Seu coração parecia acompanhar o ritmo da bateria. O suor foi inevitável.

Dizem que amor de carnaval é igual à tabelinha: vem, incomoda três dias, mas depois passa! Mas não... Aquele não havia passado. Pelo contrário, estava cada vez mais forte. Porém, a surpresa foi ainda maior. Num relance, cruzaram-se no corredor da varanda e ela o reconheceu:

– Olá, como vai você? – a moça guaraçaiense perguntou e estendeu a mão direita.

– Você ainda se lembra de mim? – ele indagou num sorriso de adolescente, pegando em sua mão para cumprimentá-la.

– Claro, no ano passado não foi você que me ajudou a trocar o pneu na entrada de Mirandópolis?

– Sim, foi, que bom que você ainda se lembra.

E as mãos não se soltavam.

– Como poderia ter esquecido? Você me ajudou naquele momento tão difícil. Serei grata eternamente.

– Que isso, foi só a minha obrigação.

– Bom, minhas amigas estão me esperando. Tenho que ir.

Ela olha para as mãos juntas.

– Ah, sim, desculpe-me.

A moça deu um sorriso e, pedindo licença, partiu deixando o encanto do primeiro contato, ironicamente preparado pelo destino. Agora, era preciso dar continuidade para ir além de um cumprimento de gratidão. Um convite para uma cerveja na lanchonete talvez. Mas o melhor mesmo era deixar novamente por conta do acaso. E assim foi...

Já na madrugada olhando os foliões agitados, o rapaz a viu no canto da pista, vestida de preto com uma fantasia de cancã, brincando solitária. Não hesitou em ir até ela como quem não queria nada e, de repente, começaram a pular as marchinhas como se fossem velhos amigos. Em certa altura, o rapaz atreveu-se em passar o braço na cintura da moça, convidando-a a entrar na pista. Convite que a moça guaraçaiense aceitou imediatamente.

“Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval...”

Num determinado momento, o rapaz tentou beijá-la, mas a moça o empurrou.

– Não, eu não quero!

– Eu pensei que...

– Pensou errado. Eu não sou daquelas que você deve estar acostumado em São Paulo.

– Espere, não é nada disso que você está imaginando.

A moça começou a se afastar, enquanto ele, desesperado, se arriscou a gritar:

– Eu te amo, professorinha!

Ela saiu correndo e, de repente, desapareceu. Seu amigo se aproximou, dizendo-lhe:

– Acho bom sairmos daqui.

Minutos depois no reservado do Restaurante “O Porão”, juntamente a outro grande amigo com um estranho apelido de “Domador de Gorila”, eles conversavam quando o rapaz chegou à conclusão que forçou a barra. Algo de errado havia com aquela moça.

– Sei lá... Ela nunca apareceu com um namorado, nunca “ficou” com alguém. Não deixa nenhum homem se aproximar dela – observou o advogado.

O Domador também fez o seu comentário:

– Se, pelo menos, ela fosse feia, mas não. Ela é uma mulher bonita, atraente, estudada, fina.

O rapaz, que apenas ouvia, complementou:

– Acho que ela deve ter tido alguma desilusão no passado, o que a impede ou, pelo menos, a faz temer se aproximar de alguém.

Ele rabiscou algumas palavras no guardanapo e teve uma ideia:

– Domador, você ainda toca violão?

– Sim, estou meio destreinado, mas quebro o galho.

– Então, venham comigo.

Minutos depois, eles chegaram à frente da casa da moça guaraçaiense. Era madrugada e as ruas estavam desertas. O rapaz pediu um fundo musical e, retirando o guardanapo do bolso, ele começou a recitar um soneto em que o romantismo e o modernismo se misturavam:

Jovem moça guaraçaiense, desperta

Aqui fora alguém te oferece uma serenata

Jovem moça desejada, escuta

A letra e as notas por ti entoadas.

Abra a tua janela, jovem moça

Saia para dançar uma valsa arcaica

Ao som de moderna guitarra desafinada

Na voz de um trovador "cara-pintada".

Se quiser, canta junto, jovem moça

O contexto a gente improvisa no olhar

O resto? Bem... Deixa rolar como orvalho.

Liberte-se de tuas quimeras, jovem moça

Enquanto tu pensas, a vida passa sem graça

E teu corpo dorme nos contos dos irmãos Grimm.

Nenhuma manifestação houve por parte da moça no sentido de abrir a janela para ouvir a serenata. Os três ficaram bastante desanimados, pois a paixão do rapaz era tanta, que seus dois amigos também tomaram as dores para si e, mudos, saíram caminhando madrugada adentro, com a certeza de quem queimou o último cartucho.

Como dizia o “síndico” Tim Maia, “eu vou à luta que a vida é curta, não vale a pena sofrer em vão”. E assim os “Três Mosqueteiros” resolveram beber e comemorar o baile carnavalesco apoteótico de terça-feira. Não hesitaram nem em comprar uma mesa só para eles no Guaraçaí Clube para “melarem” à vontade. Porém, em certa altura, acabou a cerveja da mesa e o rapaz se ofereceu para ir buscar no bar.

Já no balcão, em meio ao tumulto, acabou, sem querer, esbarrando em alguém e derrubando o copo da pessoa. Ao se virar para pedir desculpas, novamente um capricho do destino. Era a própria moça guaraçaiense.

– Desculpe-me, foi sem querer. Eu pago outro refrigerante.

– Não, não precisa se...

Antes mesmo de ela completar a frase, o rapaz foi ao caixa comprar as fichas. Ao voltar, a moça que o esperava pediu:

– Posso conversar um instante com você?

– Sim, claro. Deixe-me pegar o seu refrigerante e vamos até a varanda. 

Lá, ela não fez muito rodeio e foi direto ao assunto:

– Eu gostaria de pedir desculpas pelo modo infantil que eu saí correndo ontem à noite.

– Acho que fui eu quem errou, pois me precipitei. Eu que devo um pedido de desculpas a você.

– Não, nós dois erramos, mas acho que devemos esquecer tudo isso.

Mais uma vez, a moça guaraçaiense encantou os olhos do rapaz! Naquele momento, ela mostrou a sua maturidade num pedido de desculpas. Demonstrou não ter nenhuma atitude de adolescente no sentido de querer ficar fugindo dele. A moça estendeu a mão e propôs:

– Amigos?

– Amigos... – o rapaz aceitou sorrindo. 

Assim, a moça deixou novamente claro o desejo de só amizade, sem permitir uma aproximação mais íntima.  Mais uma vez, a moça colocou-se, simbolicamente, por trás de uma máscara negra.

Os amigos de ambos se ajuntaram e formaram um grupo só para brincarem até o fim da última noite de baile do Rei Momo, que terminou por volta das 4 horas da manhã. Ao saírem do Guaraçaí Clube, o rapaz acompanhou a moça até seu carro. Ele tomou a difícil iniciativa da despedida:

– Foi bom conhecer você e ficar seu amigo.

– Eu digo o mesmo. Bom, até uma próxima.

Um abraço fraterno!

– Até, professorinha!

Ela entrou no carro e, quando se preparava para sair, exclamou algo pela janela:

– Ah, gostaria que você soubesse que não tenho mais idade para repousar-me nos contos dos Irmãos Grimm!

– Mas pelo que me parece, a Cinderela esconde-se por trás de sua máscara negra à espera de um príncipe encantado... Pois não?

– Quem sabe?

E nessa resposta sucinta, a moça guaraçaiense sorriu, acelerou seu carro e partiu, deixando o seu mistério se prorrogar, talvez, até o próximo carnaval.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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