Capítulo 10 - NUNCA TIVEMOS TANTOS CRISTÃOS ODIANDO

No mundo eclesiástico o pastor Hilário crescia cada vez mais. Por ter uma ótima oratória, era convidado a fazer palestras para auditórios lotados. Milhares de livros vendidos, embora suas obras tinham mais notas de rodapés do que seus próprios pensamentos ou ideias originais. Nas redes sociais e nos vídeos divulgados pela internet, ele alcançava milhões de visualizações, comentários e curtidas. Tinha até uma equipe exclusiva para cuidar dessa parte.

Sua igreja, sempre lotadas, movimentando fortunas, muitos e muitos de seus admiradores diziam: “Veja como Deus põe a mão em tudo que ele faz”. Seu grande desempenho no púlpito, levavam as pessoas a creem que Hilário era um defensor severo da verdade divina. 

Certa vez um grupo de irmãos começou a propagar as ideias do movimento “Cristãos Sem Bandeiras” dentro de sua igreja. Tendo que agir rápido, ele reuniu o Conselho e, com total domínio sobre os conselheiros, tomou a decisão por si só, baseado em seu próprio legalismo - um meio humano de tentar através da obediência de regras de homens, ser aceito e amado por Deus, anulando a Graça misericordiosa -, comunicando publicamente no púlpito no culto de domingo de manhã:

- Esses irmãos estão pregando em nossa igreja ideias opostas à nossa doutrina. Principalmente no que diz ao dízimo.  São pessoas “desleais”, “traidoras” e “rebeldes”. E por isso, segundo decisão unânime do Conselho da igreja, eles estão sendo desligados da nossa comunidade. Eles não têm mais comunhão conosco e nem merecem mais a nossa saudação...

Todos os presentes se surpreenderam, pois muitos dos expulsos eram antigos membros que, inclusive, fizeram muito pelo bem daquela obra. Um deles levantou a voz:

- É isto mesmo, pastor Hilário?  Estamos sendo expulsos da igreja sem ao menos termos direito a defesa?

- Eu não lhe dei direito a palavra! – Disse Hilário ao microfone.

- Mas vou falar mesmo assim! – Exclamou o senhor com firmeza: - Você não passa de um desses falsos líderes religiosos que falam sobre o perdão, mas recusam-se a perdoar quem não reconheça sua realeza. Seu falso profeta que declara que a igreja pertence a Cristo, mas a conduz como patrimônio seu e de seus administradores, sem transparência e com a autonomia de quem se sente dono da empresa que criou!!!

No banco, uma senhora comentou ao pé do ouvido com outra:

– Onde já se viu falar assim contra o “ungido do senhor”, o “eleito”, o “profeta”, chega a ser pecado...

Hilário fez apenas um sinal com a cabeça aos seguranças e o grupo dos excluídos foi retirado do templo. 

Reestabelecida a ordem, o pastor começou a sua pregação com tamanha eloquência e dramaticidade. Ao final enfatizou a sua mensagem:

- Não se esqueçam meus irmãos. Devemos cada vez mais estar unidos em comunhão e convivendo uns com os outros aqui dentro da igreja. O mundo lá fora não tem mais nada para nós. Nem nossos parentes que não pertençam a esta fé. Nossa família agora somos só nós mesmos. E nossos recursos financeiros precisam serem empregados no bem-estar e na prosperidade desta família.

Desceu do púlpito cercado de seguranças e foi diretamente ao seu luxuoso gabinete pastoral.  Lá a secretária comunicou que várias pessoas desejavam vê-lo, pedir um conselho, uma opinião, enfermos pedindo para serem ungidos e o mais variados tipos de necessitados. Haviam também alguns irmãos empresários e mais afortunados solicitando para ter com ele. Somente esses últimos foram recebidos.

Depois Hilário desceu escoltado à garagem, sentou-se no banco de traz de seu carro importado e seu motorista partiu.

Passava por uma rua, quando o pastor observou na calçada, Yara passeando com um cachorro. Pensou: “Que mulher idiota, abriu mão dessa fortuna que eu lhe ofereci...”

Momentos depois, ele chegou a um fino restaurante na zona sul. Ao entrar, dirigiu-se à uma mesa onde cinco líderes de sua igreja o aguardavam. Todos mais velhos e vestidos com elegantes ternos importados. Ao se aproximar, eles o aplaudiram. O cabeça da turma, declarou:

- Ora, ora, chegou o pastor mais popular de nossa igreja!

Hilário nada disse, apenas dando um leve sorriso vaidoso.

Tempos depois, durante o almoço, o líder do grupo revelou-lhe:

- Hilário, como você sabe, aproximam-se as eleições. Nossa intenção é eleger cada vez mais membros de nossas igrejas para o legislativo, executivo e até mesmo para o judiciário para que cuidem de nossos interesses. Principalmente legislarmos por isenções de impostos, perdão das dívidas corriqueiras e previdenciárias das igrejas. Assim sobraria mais dinheiro aos templos. Diga-se de passagem, mais para os nossos próprios vencimentos. Pois a recomendação bíblica é que as pessoas recebam pelo seu trabalho.

Todos riem à mesa. O líder continuou:

- E o caminho para isso, precisamos lançar e apoiar nossos membros mais populares e midiáticos entre nós. Não temos tempo a perder, precisamos ser certeiros. Por isto vamos lançar e bancar sua candidatura a Deputado Federal.

- Poxa Bispo, sinto-me honrado com a indicação...

- Você ainda vai muito longe, meu rapaz. Talvez será até nosso futuro Presidente da República!

Minutos depois, um dos apóstolos levantou outro assunto:

- Meus irmãos, está me preocupando e muito esse movimento “Cristãos Sem Bandeiras”. Nossas arrecadações caíram drasticamente...

Hilário chamou a responsabilidade para si:

- Ainda hoje expulsei de minha igreja um grupinho desses rebeldes. Mas os irmãos podem deixar esse problema que sei como resolver. É até uma questão pessoal!

Terminado o almoço, Hilário dirigiu-se para o condomínio de alto padrão onde residia.


Poucas semanas depois, naquele período eleitoral, as redes sociais se tornaram Templos de muito ódio. Uma quantidade muito grande de cristãos entrou na onda, esquecendo-se que quando o cristianismo começou e erámos minoria, vivíamos escondidos, perseguidos e discriminados pela população da época com ar de superioridade em cima de nós. Os séculos passaram, o cristianismo tornou-se uma imensa massa de pessoas. E, de repente, uma parte significativa de ditos cristãos, principalmente os cibernéticos de plantão, revelaram-se altamente intolerantes com as minorias, ajudando a aumentar o ódio em vez de pregarem o amor de Deus e a União entre os povos. Atacavam até cristãos de dominações ou de pensamentos diferentes. Foi isso que Cristo fez durante toda sua vida? Foi isso que Ele nos pediu para fazer?


Várias correntes de pensadores reuniam-se para discutir aqueles comportamentos. Em uma tarde de setembro, Sílvia, a psicanalista foi chamada para fazer uma palestra para um grupo em um centro cultural. Começou dizendo:

- Hoje estamos vivendo o que chamo de Síndrome da TORRE DE BABEL, principalmente em redes sociais, onde cada um fala uma língua e não estamos construindo nada em termos de coletividade. Vocês conhecem o Mito da Caverna? Trata-se de uma metáfora criada pelo filósofo grego Platão, que consiste na tentativa de explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”, baseado na razão acima dos sentidos. Ainda no mundo de hoje, vemos as coisas iluminadas por uma lanterna de baixa potência, que simbolicamente representam somente nossos interesses. Sempre olhamos para as coisas nos perguntando, “para que isso me serve?”. E se não nos serve, a gente nem vê. A gente só ilumina a fração das coisas que nos interessam. Mas se sairmos humanamente da caverna, veremos as coisas de formas diferentes iluminadas pelo sol.

Uma senhora de cabelos grisalhos pediu a palavra, observando:

- Como Aristóteles dizia, “há quem passe por uma floresta e só veja um maço de lenha para sua lareira”. Não repara em toda aquela linda biodiversidade da floresta que a natureza nos oferece gratuitamente. Hoje não se pratica a caridade realmente pura, porque nós não olhamos mais para pessoas em condições mais baixas, porque elas não oferecem nada aos nossos interesses.

Uma moça levantou a mão, perguntando à Sílvia:

- Doutora, estamos conversando sobre a importância de se olhar o outro. Mas ao mesmo tempo, estamos vivendo um momento de muito ódio, ao contrário do que está em 1º Pedro, cap. 3, versículo 8, “quanto ao mais, tenham todos o mesmo modo de pensar, sejam compassivos, amem-se fraternalmente, sejam misericordiosos e humildes”. Tem com identificar a raiz desse problema?

- Isso foi muito bem observado por você, jovem – respondeu a psicanalista: - O ser humano odeia com muita facilidade. Ele tem dificuldade é para amar. E o ódio é uma interrupção do pensamento e uma irracionalidade paralisadora. Como pensar é árduo, odiar é fácil por ser o ópio da mente que intoxica e impede todo e qualquer incômodo. E o principal de tudo. O ódio tem um traço do nosso narcisismo infantil. O mundo deve concordar conosco. Quando não concorda, está errado. 

- Isto está em todas as culturas? - Perguntou um senhor na plateia.

- Provavelmente, senhor. Mas o brasileiro vem sofrendo há tempos. A cultura brasileira está nos empurrando para um pânico narcísico que ameaça o sujeito em seu sentimento de importância e isso é muito perigoso, porque cria e mitifica gente perigosa. O que estamos vivendo é um espetáculo de ódio, um movimento de massa como nunca se viu. É ódio pra todo lado. E esse espetáculo diz muito sobre o que somos e fazemos, pois muito fácil e rapidamente somos levados para a agressividade. Bastou tocar em alguma mutilação narcísica, não somente no corpo, mas em nossas ideias, valores, pensamentos, o ódio vem, porque é algo meu que está em jogo.

Uma mulher muito bem-vestida, naturalmente elegante, pediu a palavra:

- Se me permitem, quero fazer uma consideração. Sou uma estudiosa da mitologia. E revendo agora o mito egípcio da Deusa Leoa, ao longo da história, as civilizações sempre criaram os mitos de redentores que falam de período de desolação por falha moral do homem. Porque se perdeu o porquê. Perdeu-se o sentido de vida. O homem torna-se lobo do próprio homem. Destruidores da própria condição humana. Primeiro no plano metafisico. Depois no plano físico. Então, nesses momentos onde as inseguranças pessoais e coletivas são incrementadas, começam os movimentos de expressão desse ódio. E esse ódio não é reconhecido pelas pessoas, não se reconhecem violentas e agressivas e sim reagindo a agressão do outro. 

- Embora isso também aconteça em outros países, no Brasil estamos assistindo a um progressivo aumento das manifestações de intolerância contra as camadas mais pobres da população, na medida em que estas começam a frequentar espaços antes destinados às classes economicamente mais favorecidas, como aeroportos, shopping centers ou mesmo espaços públicos, como parques e ruas. O processo, que muitas vezes é cruel para o alvo da intolerância, é que quanto mais esses “estranhos”, isto é, quanto mais eles tentam “pertencer” ao mundo do intolerante, mas feroz aparece a rejeição. Inconscientemente, essa angústia gera nas altas e médias classes a proximidade com uma parcela crescente da população que não entrava em tela, que existia, mas não aparecia no cotidiano de muitas pessoas.

- Agradeço muito suas observações – disse a psicanalista: - Voltando a falar do ódio, somos catequistas porque somos infantis. Na política, por exemplo, a democracia é boa sempre que consagra meu candidato e a minha visão do mundo. Se esse candidato for diferente ao meu, digo que a democracia é deformada ou manipulada quando diz o contrário dos meus desejos. Política não se trata de pensar a realidade, mas adaptá-la ao meu eu. Bem disse certa vez o historiador Leandro Karnal. As “crianças” contemporâneas com 30, 40, 50 anos, batem o pé e fazem beicinho, mandam mensagens em redes sociais e argumentam violentamente quando contrariadas. Mas, como crianças mimadas, não ouvimos ninguém. Ou ouvimos, desde que o outro concorde conosco, fazendo dele um sábio e equilibrado. Selecionamos os fatos que desejamos não pelo nosso espírito crítico, mas por uma decisão que concorde com o meu eu. 

A psicanalista foi novamente interrompida por palmas. E concluiu: 

- O ódio fala muito de mim e pouco do objeto que odeio, do meu medo da semelhança. Talvez por isso os ódios inconscientes sejam mais venenosos do que os externos. Odeio não porque sinta a total diferença do objeto do meu desprezo, mas porque temo ser idêntico a ele. Posso perdoar muita coisa, menos o espelho perturbador que revela as coisas que tento esconder. As redes sociais se tornaram grandes divãs coletivos. Quando vejo nas redes sociais católicos, evangélicos, crentes, espíritas, umbandistas, budistas, judeus, mulçumanos, enfim, praticarem toda sorte de intolerâncias, tentando impor suas opiniões como verdades absolutas, muitas vezes para justificarem suas próprias dores internas ou inseguranças inconscientes, concluo: Realmente não evoluímos quase nada humana e espiritualmente, graça as nossas posições cada dia mais narcisistas!

A especialista em mitologia lembrou-se:

- Entrando no campo religioso, a Bíblia recomenda: “Mas eu digo a vocês que estão me ouvindo: Amem os seus inimigos, façam o bem aos que os odeiam, abençoem os que os amaldiçoam, orem por aqueles que os maltratam”, Lucas 6, versículo 27 e 28.

Uma moça loira de cabelos curtos, desabafou:

- A Bíblia diz que não devemos odiar as pessoas. O ódio é um sentimento muito forte de aversão, sem nenhum amor. Quem não ama seu irmão não tem o amor de Deus dentro de seu coração. O ódio por outras pessoas é destrutivo e leva ao pecado. Em 1º João, cap. 4, versículo 20, diz que “se alguém afirmar: "Eu amo a Deus", mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê”.

Um seminarista observou de seu assento:

- O que mais me dói é lembrar que Cristo nos pediu para sermos modelos para o mundo. No entanto, o mundo é que virou o modelo e contaminou negativamente o comportamento cristão. Negativamente no sentido de nos individualizar dentro de nossos mundos particulares, destruindo o Amor Fraternal que une irmãos e amigos. Quando amamos uns aos outros, revelamos o amor de Deus. Jesus chama seus seguidores de seus amigos e Ele nos mostrou o tamanho de seu amor fraternal ao morrer por nós. O amor fraternal é prático e se expressa em ações. Não basta dizer que amamos uns aos outros. Precisamos mostrar amor na forma como resolvemos conflitos, perdoamos ofensas e cuidamos dos mais necessitados. O amor fraternal é prático! “Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal. Prefiram dar honra aos outros mais do que a vocês”, Romanos 12, versículo 10.

Sílvia encerrou aquele encontro com a seguinte consideração: 

- Gente, o espírito cristão é contrário àquele espírito egoísta que consiste no amor próprio que vai após os objetivos que se confinam e se limitam a ele próprio, buscando riqueza terrena, em estar no mundo num pedestal muito acima de seus semelhantes, a o prazer e gratificação de seus próprios apetites e paixões físicas. O espírito cristão legítimo a favor de seu semelhante, por exercer simpatia e misericórdia, assim a caridade, deve ser o oposto de egoísmo, e, portanto, o amor é generoso, buscando bem daqueles que se acham em aflição, solidariza-se com todos e a tudo fazer para a promoção de seu bem sempre que houver oportunidade. Esse espírito cristão íntegro não cultiva pontos de vistas estreitos e privados, revelando profundo interesse e preocupação pelo bem da comunidade e, particularmente pela caridade, visa o verdadeiro bem-estar da sociedade da qual é membro. Portanto, meus amigos, na contramão disso, o ódio e o egoísmo são a grande raiz de todas as limitações humanas, assassinando toda e qualquer ação de Caridade!

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Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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