Capítulo 11 - HOJE PRECISO PEDI PERDÃO PUBLICAMENTE A DEUS!!!

  A comissão organizadora de um congresso sobre voluntariado mundial convidou Yara para uma palestra. O seu amigo Rubens foi acompanhá-la. Ao ser anunciada, ela subiu ao palco, olhou à plateia firmemente, dizendo:

- Circulou a pouco tempo nas redes sociais um post sobre Angélique Namaika, enfermeira que anda de bicicleta, atendendo mulheres vítimas de estupro no Congo destruído por guerras tribais. Ela ganhou recentemente o prêmio da ONU para refugiados. Quase ninguém ficou sabendo. Mas se Angélique Namaika fosse uma princesa europeia, loira de olhos claros, o mundo inteiro seria avisado pela imprensa. Também me comoveu muito a imagem de uma senhora africana deitada em cima de um papelão no meio de um aterro sanitário, recebendo soro na veia, enquanto seu pequeno filho estava de pé segurando o frasco. É por isto que hoje eu preciso pedir perdão publicamente a Deus!!!

Todos se olharam em silêncio sem nada entender. E ela continuou: 

- Eu estava assistindo à televisão e passou uma propaganda dos Médicos Sem Fronteiras na África. Àquelas crianças e pessoas magras, doentes, famintas, vivendo ao relento, sem mínimas condições de higiene, mas não deixam de ter sorrisos nos rostos sofridos. Na África ao menos 236 milhões de pessoas são afetadas pela fome. Isso resulta de vários fatores como o processo colonial, a concentração de poder, as condições climáticas, a corrupção das autoridades, a baixa produtividade agrícola, o aumento populacional, entre outros. No jogo de interesses, os países que ocuparam a África retiraram do território riquezas materiais e matérias-primas que poderiam servir para o desenvolvimento da região. Além disso, escravizou seus povos, retirando a população jovem que tinha condições de trabalhar. No processo de descolonização, para conquistarem a independência, alguns países tiveram que lutar longamente contra seus colonizadores. Este foi o caso da Argélia e do Congo, por exemplo. Além disso, devemos considerar os próprios conflitos internos dos povos africanos, que após a independência, entraram em guerra civil. Um país em guerra não cultiva, as tribos são constantemente ameaçadas e roubadas pelos soldados de ambos os lados. Desta maneira, os agricultores abandonam os cultivos, o período de escassez de alimentos começa e a fome se espalha. A fome é maior nos países em guerra, pois estes absorvem a capacidade de geração de renda e mantêm a ordem de exploração dos conquistados. A guerra civil também cria o deslocamento de populações que não tem outra alternativa a não ser ir para campos de refugiados. Aliás, diga-se de passagem que o mundo vive uma crise dos refugiados, pessoas que saem de seus países por conta de fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, em situações nas quais não possa ou não queira regressar. A origem da maior parte dos refugiados são países da África ou do Oriente Médio. Eles fogem por conta de conflitos internos, guerras, perseguições políticas, ações de grupos terroristas e violência aos direitos humanos. Metade do fluxo anual de refugiados são sírios, que deixam suas origens devido à guerra civil em que o país está desde 2011.

Yara tomou um gole de água e continuou:

- Voltando a falar da África, os problemas ambientais também aumentam a questão da fome. Hoje, a África carece de soluções para os processos de erosão e desertificação ocorridos pelo desmatamento. Áreas com solo pobre têm menores chances de produção agrícola e baixo desempenho. As questões ambientais africanas esbarram na falta de investimentos e na competitividade. Os organismos internacionais atuam nas consequências do problema e não nas causas. Outro ponto decisivo para a fome na África está na corrupção. Verbas de ajudas humanitárias com frequência acabam nas mãos de políticos corruptos e não chegam a quem precisa.

Foi aplaudida por algum tempo: 

- É por isso que peço perdão a Deus pelo meu grande EGOÍSMO HUMANO. Deus me deu uma ótima família, um lar, alimento com abundância à minha mesa, um guarda-roupa cheio, um bom plano de saúde pago mensalmente. Permitiu-me estudar, ter várias atividades paralelas, produzir profissionalmente, ter minha própria renda, tenho direito a ter vaidade e, às vezes, até gastar com coisas fúteis. Tenho incontáveis amigos que me admiram e compartilham comigo o movimento de caridade! Peço perdão a Deus porque, assim como todos os que estão aqui na plateia e nas redes sociais, sou uma pessoa abençoada. Só que sou mesquinha naqueles momentos que reclamo de coisas tão pequenas e até insignificantes. Perdão meu Deus por todas as vezes que acho que meus problemas e dificuldades que surgem no cotidiano são as maiores do mundo, enquanto neste mesmo mundo milhões dessas pessoas, muitas inocentes crianças, clamam por apenas um prato de comida, um copo de leite. Perdão meu Deus por todas as vezes que me coloquei em oração pedindo algo para mim ou me queixando das barreiras que na verdade são permissão Sua para o meu crescimento e nem se quer mencionei uma palavra de interseção em favor dos mais necessitados.

Ela foi interrompida, sendo aplaudida de pé. Depois concluiu:

- A humanidade tem uma dívida impagável com àqueles que sofrem na África e em outros países miseráveis. Eu sei que essa dívida nunca será paga, pois estamos todos presos em nossos mundinhos particulares murados por comportamentos egocêntricos. Mas também sei pela convicção da minha fé que esses povos serão um dia recompensados, recebidos com extremo carinho por Deus de braços abertos lá nos céus. Eu e todos nós, mesmo não tendo o devido reconhecimento de quanto somos privilegiados pelas providências que Deus proporciona em nossas vidas, teremos também o direito de viver com nossos irmãos africanos em igualdade lá na eternidade. Perdão meu Deus por todas as vezes que reclamei por tão pouco…

Yara foi aplaudia de pé. Uma moça levantou a mão, perguntando-lhe:

- O que podemos fazer pelo povo africano?

- Eu sempre digo que a caridade não precisa ser apenas terceirizada. Devemos nós mesmos praticá-la. Só que nesse caso é diferente. A África está muito longe de nós. Então podemos ajudar com doações à muitas obras cristãs missionárias existentes naquele continente. Ou pela sociedade civil, doando às ongs importantes e sérias como os Médicos Sem Fronteiras, a Cruz Vermelha, a Abrinq aqui no Brasil e a própria Unicef. Para mim a dor mais profunda é pensar que neste exato momento, crianças estão passando fome. Vítimas de desnutrição grave, emagrecimento extremo, podendo levar à morte, sendo que as crianças menores de cinco anos são as primeiras a serem afetadas, assim como as mulheres grávidas ou lactentes e os idosos. Ou vítimas de desnutrição moderada, aumentando a vulnerabilidade às doenças. 


Após a palestra, no intervalo, estavam todos no saguão tomando lanche, quando a organizadora pediu a palavra:

- Pessoal, numa grata surpresa, reparei que entre nós está o grande pianista Rubens Castro. Vou tomar a liberdade de pedir a ele que toque algo para nós aqui no piano do saguão.

Todos começaram a aplaudi-lo, enquanto ele tremia. Yara rapidamente aproximou-se do amigo.

- Eu não vou conseguir...

- Lógico que vai, Rubens. Como a senhora falou, você é o grande pianista Rubens Castro. Então senta-se naquele piano e arrebenta!

Ele caminhou lentamente até o instrumento acompanhado pela sua amiga. Sentou-se, mas parecia bloqueado por suas lembranças.

Yara percebeu, dizendo-lhe com firmeza:

- A maior recompensa de um ofensor é ver o ofendido sofrendo. Pare de ficar queimando vela com defunto ruim e retome a sua vida!!!

Ele começou a dedilhar o piano. Foi como se toda a alegria dos tempos de auge o invadisse novamente. E a vontade de tocar aumentava cada vez mais...


Com o passar dos meses, o modelo dos “Cristãos Sem Bandeira” se espalhou por várias regiões em volta do mundo, chegando também à África. Vítimas da desnutrição e falta de acesso a cuidados de saúde causam a morte de milhões de crianças. Rapidamente, as reservas de gorduras e a massa muscular são consumidas, infecções aparentemente banais, como gripe e diarreia, podem se tornar mortais. E as maiores vítimas são as crianças. Infelizmente, esse é um dos desafios mais comuns enfrentados no dia a dia das ações humanitárias.

É consenso da ONU, dos estudiosos, das organizações não-governamentais, dos governos mundiais e das nações africanas que não há falta de alimentos para a África. O que falta é uma administração correta dos recursos naturais para que todos possam ser alimentados.

As condições enfrentadas pelos povos africanos resultam de políticas de exploração permanente. Com o aumento do preço das matérias-primas no começo do século XXI, o continente apresentou taxas de crescimento significativas e diminuiu os índices de mortalidade infantil. Seria preciso aproveitar este bom resultado, investir em educação para criar um ciclo virtuoso que acabasse de vez com a fome na África. 

Assim, além de organizações não-governamentais como os Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, Unicef, Abrinq, ações da sociedade civil e cristãos do mundo todo começaram a incentivar financeiramente e em correntes de orações, muitas missões evangélicas que atuavam no continente africano.

Vem do continente africano a palavra Ubuntu, sem uma tradução literal, mas significando "humanidade para com os outros”, exprimindo a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade. Desmond Tutu, da Igreja Anglicana consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua luta contra o Apartheid em seu país natal e primeiro negro a ocupar o cargo de Arcebispo da Cidade do Cabo, autor de uma teologia ubuntu, diz que "a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade", uma noção de fraternidade implica compaixão e abertura de espírito e se opõe ao narcisismo e ao individualismo. 

Nelson Mandela, advogado e presidente da África do Sul de 1994 a 1999, considerado como o mais importante líder da África Negra, vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993, assim explicava esse ideal: “Respeito. Cortesia. Compartilhamento. Comunidade. Generosidade. Confiança. Desprendimento. Uma palavra pode ter muitos significados. Tudo isso é o espírito de Ubuntu. Ubuntu não significa que as pessoas não devam cuidar de si próprias. A questão é: você vai fazer isso de maneira a desenvolver a sua comunidade, permitindo que ela melhore?”

E voltando ao Arcebispo Desmond Tutu e suas palavras: “Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em uma autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são torturadas ou oprimidas. Portanto Ubundu exprime a crença na comunhão que conecta toda a humanidade: "sou o que sou graças ao que somos todos nós".


Na música, pelo mundo, inspirado nos “Cristãos Sem Bandeiras”, começou-se a criar novas iniciativas inspiradas no lendário 1985. Em janeiro daquele ano surgiu a música "We Are The World", idealizada e composta por Michael Jackson e Lionel Richie, gravada por 45 dos maiores nomes da música norte-americana no projeto USA for África, com objetivo arrecadar fundos para o combate a fome no continente africano. O single, o álbum vídeo clipe renderam cerca de 55 milhões de dólares. 

Em seguida veio o “Live Aid”, um concerto de rock realizado em 13 de julho de 1985, organizado por Bob Geldof e Midge Ure com o objetivo de arrecadar fundos em prol dos que passavam fome na Etiópia. Os concertos foram realizados no Wembley Stadium em Londres (com uma plateia de aproximadamente 82 mil pessoas) e no John F. Kennedy Stadium na Filadélfia (aproximadamente 99 mil pessoas). Alguns artistas apresentaram-se também em Sydney, Moscou e Japão. Foi uma das maiores transmissões em larga escala por satélite e de televisão de todos os tempos. Estima-se que 1,5 bilhão de espectadores, em mais de 100 países, tenham assistido a apresentação ao vivo.

A iniciativa desembarcou no Brasil. A Rede Globo, no programa Fantástico, lançou o vídeo clipe da música "Viver outra Vez" em benefício da campanha em combate a AIDS.  As músicas “Chega de Mágoa” e “Seca d´Água” faziam parte do disco compacto do projeto Nordeste Já, gravado em 1985, com objetivo de angariar fundos para o Nordeste, sendo vendido pela Caixa Econômica Federal e o dinheiro depositado em uma conta especial. Foram gravados dois clipes com a participação de 155 cantores do universo musical brasileiro, sendo a interpretação das canções compostas em coro, inspiração da canção “We Are the World” lançado no mesmo ano.


O mundo dos esportes também foi contaminado pelo movimento “Cristãos Sem Bandeiras”. Várias partidas de grandes clássicos do futebol mundial passaram a destinar o equivalente há um real de cada ingresso às questões africanas.

Os grandes e poderosos meios de comunicação deixaram um pouco de lado suas posições meramente capitalistas e passaram a cobrir o emprego correto desses recursos na África, assim como investigar e denunciar o roubo dos desvios de tais recursos. Logo todos os africanos estavam bem alimentados, com empregos gerados, doenças erradicadas e todos vivendo com dignidade.

Todas essas ações foram reduplicadas em tantas outras crises humanitárias, situações de emergências, em que as vidas de um grande número de pessoas se encontravam ameaçadas e nas quais recursos extraordinários de ajudas humanitárias eram necessários para evitar uma catástrofe ou pelo menos limitar as suas consequências. Crises humanitárias caracterizadas pela privação de alimentação, abrigo, riscos à saúde, à segurança ou ao bem-estar de uma comunidade ou de um grande grupo de pessoas, em uma área quase sempre extensa. Conflitos armados (guerras entre países ou guerras civis), epidemias, crise alimentar (decorrente de secas ou pragas) ou desastres naturais (terremotos, inundações, tsunamis) podem levar às crises humanitárias, como por exemplo, milhões de refugiados pelo mundo.


Fatos que lembravam a memória de Zilda Arns, médica pediatra e sanitarista brasileira, fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança e da Pastoral da Pessoa Idosa, organismos de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Formada em medicina pela UFPR, em 1959, aprofundou-se em saúde pública, pediatria e sanitarismo, visando a salvar crianças pobres da mortalidade infantil, da desnutrição e da violência em seu contexto familiar e comunitário. Compreendendo que a educação revelou-se a melhor forma de combater a maior parte das doenças de fácil prevenção e a marginalidade das crianças, para otimizar a sua ação, desenvolveu uma metodologia própria de multiplicação do conhecimento e da solidariedade entre as famílias mais pobres.

Em 1983, Zilda Arns deu início de sua experiência a partir de um projeto-piloto em Florestópolis. Após vinte e cinco anos, a pastoral acompanhou 1.816.261 crianças menores de seis anos e 1.407.743 de famílias pobres em 4060 municípios brasileiros. Neste período, mais de 261.962 voluntários levaram solidariedade e conhecimento sobre saúde, nutrição, educação e cidadania para as comunidades mais pobres, criando condições para que elas se tornem protagonistas de sua própria transformação social.

Para multiplicar o saber e a solidariedade, foram criados três instrumentos, utilizados a cada mês: Visita domiciliar às famílias, Dia do Peso, também chamado de Dia da Celebração da Vida, Reunião Mensal para Avaliação e Reflexão. Em 2004 recebeu da CNBB outra missão semelhante: fundar e coordenar a Pastoral da Pessoa Idosa. A médica dividia seu tempo entre os compromissos como coordenadora nacional da Pastoral da Pessoa Idosa e coordenadora internacional da Pastoral da Criança e a participação como representante titular da CNBB no Conselho Nacional de Saúde, e como membro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Zilda Arns encontrava-se em Porto Príncipe, em missão humanitária, para introduzir a Pastoral da Criança no país. No dia 12 de janeiro de 2010, pouco depois de proferir uma palestra para cerca de 15 religiosos de Cuba, o país foi atingido por um violento terremoto. A Dra. Zilda foi uma das vítimas da catástrofe. Naquele momento ela estava discursando, quando as paredes da igreja desabaram, a médica estava no último parágrafo do discurso, que ela não chegou a terminar, falava da importância de cuidar das crianças "como um bem sagrado", promovendo o respeito a seus direitos e protegendo-os, "tal qual os pássaros cuidam dos seus filhos".

Escreveu certa vez a Dra. Zilda: “Cremos que esta transformação social exige um investimento máximo de esforços para o desenvolvimento integral das crianças. Este desenvolvimento começa quando a criança se encontra ainda no ventre sagrado da sua mãe. As crianças, quando estão bem cuidadas, são sementes de paz e esperança. Não existe ser humano mais perfeito, mais justo, mais solidário e sem preconceitos que as crianças. Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe de predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, devemos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los”.

LEIA O PRÓXIMO CAPÍTULO


Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem