Capítulo 4 - OS CRISTÃOS SEM BANDEIRAS

Yara não teve dúvidas, voltou a escrever seus posts e a convocar o pessoal às ações de caridade. Cada vez mais apareciam pessoas, doações, a ideia era multiplicada em outros locais, bairros, cidades...


Em uma tarde de sol, ela passeava com um cachorro na praça, quando Hilário aproximou-se, dizendo com tom de repressão:

- Então você resolveu retomar o seu discurso em prol da caridade?

- Eu só estou fazendo o que meu coração pede...

- Havia lhe avisado que isso era muito perigoso, menina. Em nossa própria igreja a arrecadação caiu bem devido essa sua teoria que a caridade não precisa ser apenas terceirizada. Muitos de nossos membros estão por aí fazendo obras por suas próprias mãos. E isso está incomodando muito a direção de nossas igrejas.

- Com certeza! – Afirmou Rubens aproximando-se ao perceber a feição de Yara precisando de ajuda: - Como fica a prática do evangelismo midiático massivo, a maior parte delas utilizam, ou até mesmo possuem, canais de TV, rádios, jornais, editoras ou literaturas próprias e portais ou sites, participando, inclusive, de atividades comerciais como a venda de TVs por assinatura ou produtos da ideologia religiosa? Aliás, um escritor já disse que o maior medo de algumas igrejas é Jesus realmente voltar. Já pensou Ele pegar todo esse dinheiro arrecadado em nome Dele e distribuir aos pobres?

- Quem é o senhor? Ninguém o chamou nesta conversa...

- Mas eu entrei porque Yara é uma querida amiga e ninguém irá tripudiar em cima dela. Ainda mais por um pastorzinho como você que deve ser um desses que tem crescimento rápido nessas igrejas e na política. Pois não?

- Sim rapaz, precisamos ganhar espaço na política, principalmente para eliminármos essas religiões contrárias a nossa e fazer do nosso país uma pátria puramente cristã.

- O que é inconstitucional, senhor “bem-intencionado” pastor. Seja qual for a religião ou o deus de cada um, sempre será uma opção pessoal. E opções pessoais ou de certos grupos não podem ser impostas a todos politicamente.

O pastor Hilário foi ficando sem graça com as argumentações de Rubens e, suando à testa, disse:

- Bem, tenho que ir. Mas tenho um último recado. O conselho pastoral se reuniu e chegaram a um acordo. Você Yara não faz parte de nenhum ministério e nem é mais bem-vinda à nossa igreja.

Hilário estava se afastando, quando Rubens lhe falou alto:

- Não se esqueça o que está escrito em 19 de Provérbios, versículo 22: “O encanto de um homem é a caridade: mas vale o pobre que o mentiroso”.

Ele se retirou à passos largos. A moça em estado de choque, abraçou Rubens, que todo sem jeito, acalmou-a:

- Não fique assim. Quando nossas palavras ou ações começam a incomodar pessoas, é a prova que estamos no caminho certo!


Dias depois, já recuperada, Yara convocou uma ação no centro da cidade. Apareceram muitos voluntários de diferentes denominações evangélicas, judeus, católicos, espíritas, umbandistas, muçulmanos, ateus, pessoas de várias etnias, refugiados. Todos por um bem comum: a prática da caridade realmente pura!

Profissionais que trabalhavam com ONGs e instituições de caridade, defendendo que ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade com a doação de alimentos não só promoviam amparo aos que precisavam, como também representava uma forma de evitar novos casos de violência, já que uma pessoa que está passando extrema necessidade escolheu pedir ajuda na rua e não roubar. 

Ali se confirmava o espírito solidário brasileiro que sempre se manifestava por meio da união diante de tantas tragédias pelo país, em ações humanitárias e anônimos, mas em sua grande parte sem nenhuma conotação religiosa. 

Entre eles destacavam o grupo de pessoas que já pertenceram a alguma igreja e estavam fora por diversos motivos, mas que defendiam acima de tudo o amor ao próximo e a caridade acima de qualquer dogma religioso. Pessoas chamadas pejorativamente de desagrejados.

Juntando a eles, surgiam os “Cristãos sem Bandeiras”, pessoas que mesmo sendo membros e sentindo comunhão com Deus em suas igrejas de escolhas, reuniam-se em prol do próximo. Sem deixarem a fé e a certeza de suas Salvações, praticavam a caridade e o amor verdadeiro interdominicional, muito acima da defesa meramente de doutrinas e dos nomes de placas de igrejas nas fachadas. Um cristianismo retomando ao modelo, aos valores primitivos dos primeiros três séculos de sua história!!!

O pessoal foi de encontro aos moradores de rua, vítimas do frio, da invisibilidade, do preconceito. Descobriram um pessoal bacana, do bem. Chamados de mendigo, mendicante, pedinte, indigente, esmoleiro, esmoler, morador de rua, sem-teto ou sem-abrigo, pessoas que, no Brasil, numa tentativa de abordar de forma mais politicamente correta a questão dos que viviam em carência material absoluta, criaram-se as expressões "pessoas em situação de rua" e "sem-teto" para denominar este grupo social. Eram indivíduos vivendo em extrema carência material, não conseguindo obter as condições mínimas de salubridade e conforto com meios próprios. Uma situação de indigência material, forçando-os viver nas ruas, deslocando-se de um local para o outro. Pessoas que obtinham seus rendimentos por meio de subsídios de sobrevivência estatais ou pela da prática da mendicância à porta de igrejas, em semáforos ou em locais bastante movimentados como os centros das grandes metrópoles. A grande carência material na qual essas pessoas viviam poderia levá-las à morte em algumas situações, como em ondas de frio.

Pessoas que refletiam o intenso processo de exclusão social pela decorrência da ocupação do solo urbano. Vítimas da lógica capitalista de apropriação privada do espaço mediante o pagamento do valor da terra, os moradores de rua não dispunham de renda suficiente para conseguir espaços adequados para a habitação e, sem alternativas, utilizavam as ruas da cidade como moradia. Um segmento social excluído que se caracterizava por ser um grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades, mas que tinha em comum a condição de pobreza absoluta, vínculos interrompidos ou fragilizados e falta de habitação convencional regular, sendo compelidas e utilizavam a rua como espaço de moradia e sustento, por caráter temporário ou de forma permanente.

Entre os principais fatores que levavam as pessoas a morar nas ruas estavam: ausência de vínculos familiares, perda de algum ente querido, desemprego, violência, perda da autoestima, alcoolismo, uso de drogas e doenças mentais. 

Mesmo que grande parte dos estudos sobre esse tipo de população tenha sido realizada no século XX, há registros de sua existência desde o século XIV. Humanos que nunca tiveram a devida atenção nos séculos anteriores e nos dias atuais, visto que a cada ano mais indivíduos utilizam as ruas como moradia.

- Que gente legal, carinhosos com a gente. E de pensar que muitos têm nojos desses moradores de rua – comentou uma das voluntárias.

Um senhor comentou:

- Se doar não precisa ser atividade exclusiva dessas importantes e fundamentais ONGs e associações. Basta levar a eles alguma coisa que temos em casa, ou apenas oferecer a eles um bom dia, perguntar um como vai?

Outra moça observou:

- Muitas pessoas os temem por serem em sua grande parte usuários de drogas, ou terem distúrbios psicológicos.

- Só que o consumo é bem maior dentro de certos condomínios fechados, festinhas particulares, mas ninguém vê por se tratar da vida privada – disse Sílvia, a psicanalista que acompanhava o grupo: - Nada justifica, mas entre esse pessoal vivendo nas ruas, esse consumo aumenta conforme as crises que estão vivendo, a falta de perspectiva, frustração, exposição ao medo, ansiedade. 

- Se repararmos, muitos deles encontram em seus cachorros a falta do que não encontram na sociedade – falou o senhor: - E olha que muitos desses cachorros são mais limpos que grande parte dos políticos com apartamentos funcionais.

- Eu não entendo por que muitos deles preferem passar a noite nas ruas do que ir para albergues? – Questionou uma das moças.

- Albergue significa para muitos deles a perda de suas próprias identidades. Muitos se tornam lá só mais uma peça, um número estatístico de nossas políticas públicas – mencionou a psicanalista.

O senhor continuou suas observações:

- E a tendência é essa questão social se tornar ainda maior devido a crise econômica que transforma desempregados em pessoas em situações de rua. Graças ao nosso modelo competitivo, excludente, são os descartáveis.

- Na verdade, meu senhor, não só esse modelo socioeconômico político que descarta, mas também os religiosos – acrescentou Sílvia: - Quando se está em uma religião, parece que as pessoas entram numa espécie de bolha e não enxergam mais o que se passa pelo lado de fora. É como se sentisse superiores, ou as escolhidas, como pregam muitas das religiões. E com isso, dane-se o resto da humanidade.

E o mesmo senhor completou:

- Tem gente que está a anos, décadas dentro da igreja e nunca olhou nem para os irmãos ao lado. Quanto mais para visitantes que vão às suas igrejas. Panelinhas de ricos e pobres também dentro das religiões. 

- Temos que fazer alguma coisa para reinserir essa população de rua novamente na sociedade – pensou alto a moça.

- Eles sempre estiveram inseridos na sociedade – observou a psicanalista: - Nós que não queremos vê-los. São nossas cegueiras morais, como escreveram Zygmunt Bauman e Leonidas Donskis. Hoje estamos vivendo uma vida líquida, que facilmente se dissolve, evapora e dissipa de nosso controle, de nossa consciência e de nossos valores mais absolutos. Na transitoriedade e na banalidade de nossos laços afetivos, não queremos mais compromisso, sustentados pelo descaso, a indiferença e o mínimo sentimento de coletividade. Nosso individualismo se expressa ferozmente, abandonando em tempos passados defesas do grupo, o olhar cuidadoso e genuíno às necessidades do outro. Estamos vivendo um "Salve-se quem puder". Politicamente nossas consciências foram esvaziadas e viramos fantoches de falsos líderes sociais, políticos e mesmo religiosos desrespeitosos e incrédulos. Vestimo-nos da indiferença para sobreviver à violência da qual não apenas fazemos parte, como para manter a nossa existência. Por não assumirmos uma postura ética diante dos devaneios atuais, distante de nossas premissas mais básicas do viver, hoje cada um de nós é uma ilha isolada, defendendo seus interesses, tão pouco apropriados pelo próprio sujeito que o defende. Do alto de nosso narcisismo nos achamos tão inteligentes e espertos, mas somos meramente fantoches de uma massa produzida por esses falsos líderes e manipulada por interesses capitalistas.

 

Momentos depois, uma moça se aproximou de Yara, expondo-se: 

- Acho tão lindo esse gesto de vocês. Eu tenho tanta vontade de ajudar...

- Minha amiga, desejar, ter vontade não é ação. Essa vontade precisa ser ativa e universal. O voluntário é um ser evoluído que superou em alguma dose o egoísmo. Hoje a sociedade privilegia o egoísmo, o destacar acima do outro. Para você vencer, alguém precisa ficar por baixo... Alguém tem que ter fracassado para nos sentirmos vitorioso, é quase um impulsionamento inconsciente. Algo inviável dos valores humanos da fraternidade e da caridade. 

- Eu sei moça, mas eu não tenho nenhuma religião. Mesmo assim, eu posso ajudar?

- Claro, minha querida. Todos nós podemos e devemos praticar as BOAS OBRAS, um chamamento para todo o cristão viver a fé e o mandato de Jesus Cristo, pois, segundo várias confissões cristãs, que são feitas para agradar a Deus por amor e são as consequências da verdadeira fé, posta em prática. Esta fé em Jesus Cristo e nos seus ensinamentos traduz-se no nosso desejo de praticar e exprimir a virtude da caridade, o espírito de misericórdia e, em suma, a vontade de Deus. Aliás, foi o próprio Jesus que diz, “nem todo aquele que me diz "Senhor, Senhor" entrará no Reino dos Céus, mas aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mateus 7, versículo 21). 

- Eu me lembro que minha professora de religião dizia que, apesar do apóstolo Paulo defender “que o homem é justificado pela fé”, ele afirma também que “Deus retribuirá a cada um segundo suas obras”. Sobre este assunto, São Tiago diz também que “o homem é justificado pelas obras e pela fé”, ou então "pelas obras que nascem da fé, porque a fé sem obras é morta".

- Viu como você é uma moça com caridade no coração? Jesus manda os seus crentes, que são a luz do mundo, que “brilhem do mesmo modo a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5, versículos 14 a 16). Com isto, pode-se concluir que o homem deve dar glória a Deus na terra através de suas obras. Podendo fazer obras, e não as fazendo, peca o homem contra Deus e não se justifica pela Fé, visto que sua Fé é morta ao não produzir os frutos esperados. Logo, "o homem é salvo pelas boas obras nascidas da fé", porque "só uma fé viva pode dar a vida", sendo por isso a prática delas um instrumento necessário para a salvação.

Yara entregou algumas marmitas à moça, dizendo em um sorriso:

- Tome, basta começar. Bem-vinda ao nosso movimento!

Estavam distribuindo os donativos que trouxeram de casa, quando uma van parou cheia de marmitas para serem entregues. E novamente o motorista lhes disse não saber quem havia pago e mandado entregar.

Mais tarde, um grupo de moradores de rua se ajuntou. Entre eles, um senhor negro, de cabelos e barba grisalho, enrolado em um velho cobertor e com uma Bíblia à mão, disse em nome de todos com os olhos em lágrimas:

- Em nome dos meus companheiros, quero agradecer o carinho de todos vocês. Estou há mais de duas décadas vivendo nas ruas. E se tem algo que aprendi, foi isso. Religião não uni.  Religião separa. Jesus Cristo sim, uni...!

A resiliência é um comportamento independente de classe social. Este é o caso dessas pessoas nas ruas, tendo comportamento e resiliência em um cenário marcado por preconceito, violência e desprezo. E ninguém é resiliente sozinho, sendo a interação com outros moradores de rua fundamental para superar situações difíceis. O modo que essas crianças e adultos vivem, ajudam-lhes a sublimar traumas e a se tornarem pessoas resilientes, pela energia vinda dessa interação desses excluídos socialmente.


Ao final, Yara estava arrumando tudo, quando alguém aproximou-se por trás, perguntando-lhe:

- Precisa de ajuda, senhorita?

Ao olhar, Yara abriu um sorriso:

- Você veio Rubens, que bom!

- Digamos que eu não tinha nada para fazer em um sábado à noite. Vamos, eu vou lhe acompanhar até o nosso bairro.

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Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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