Capítulo 3 - O HOMEM SEM NOME

No domingo os próprios moradores do bairro convocaram a ação. Yara foi como simples participante. Novamente chegou uma van com centenas de marmitas vindas de um doador anônimo. O número de pessoas já era o dobro do que no primeiro encontro.

As doações eram tantas que deu para suprir moradores de ruas nos bairros vizinhos, embora que, para surpresa de Yara, esse mesmo gesto estava sendo realizado em outras localidades.

Nos dias seguintes, diante de seu computador, a moça começou a receber muitas mensagens e fotos de pessoas, espelhadas no post que ela escrevera no domingo anterior, realizaram iniciativas semelhantes em outros bairros, cidades e Estados.


Com o passar das semanas, aquela iniciativa lançada por ela foi diminuindo. Em uma dessas rápidas conversas com Rubens, chegou a comentar isso.

- Claro Yara, as pessoas já há muito tempo perderam o hábito de ter iniciativas próprias. Elas precisam de pessoas que as liderem e mostre o que precisam fazer. E nesse caso, essa pessoa é você.

- Eu!? – Surpreende-se.

Aquilo passou a ser um constante soar na mente de Yara. Lembrava-se daquela menina que havia ajudado. Dos rostos humildes e felizes das pessoas em situação de rua quando assistidas. Das centenas de mensagens positivas recebidas. Das muitas pessoas de sua igreja que passaram a praticar a caridade por conta própria além de contribuírem nas coletas.

Sabia que poderia recomeçar a escrever os posts de incentivos. Só que algo lhe deixava inapta e ao mesmo tempo angustiada.

Na manhã de domingo, Yara acordou com a cabeça mais confusa ainda. Pediu a Deus um sinal do que fazer. E sentiu vontade de ir ao culto matutino.

Pelo caminho foi vendo muitas pessoas em situação de rua dormindo pelas calçadas. Sentiu um pouco de culpa por aquilo.

Na igreja, alguns testemunhos pessoais relatavam em alto som grandes vitórias e conquistas materiais, riquezas. Olhando a sua volta, a moça via vários de seus conhecidos que ouviam aquilo em silêncio. Pessoas simples, muitos até que passavam necessidades materiais e alimentares. Irmãos desempregados, com dívidas, sem ninguém para estender-lhes a mão ou dar-lhes uma palavra de consolo. Diferentes dos irmãos ricos que ofertavam grandes coletas à igreja, os mais pobres eram quase invisíveis ao ministério.

Na pregação as pessoas falavam de bens e riquezas, que Jesus era um rei e daria triplicado àqueles que não temiam em doar tudo que tem à igreja.

Após o culto, Yara voltou a se unir aos irmãos para contagem e registros da arrecadação. Como de costume, ficou por última na sala guardando o livro-caixa, apagando a luz e fechando a porta.

Ela estava saindo, quando Hilário lhe chamou para uma conversa de canto.

- Sabe irmã Yara, foi muito bom você ter parado com àquelas postagens. Aquilo estava trazendo prejuízos consideráveis às nossas coletas.

- As pessoas só estavam elas mesmas fazendo caridades pelas suas próprias mãos.

- Eu sei, mas nós temos pessoas encarregadas para fazer isso em nome da igreja. Aliás, todas as coletas precisam ser feitas principalmente para nossa igreja como recomenda Gálatas, 6, versículo 10, “então, enquanto temos tempo, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos da fé”.

- Desculpe-me pastor Hilário, mas o “façamos bem a todos” vem em primeiro lugar no versículo. A Bíblia não diz que a caridade precisa ser apenas terceirizada. Pelo contrário, precisamos praticá-la pelas nossas próprias mãos, “fazer o bem sem olhar a quem”.

- Yara, Yara, você está entrando por um caminho muito perigoso. Se eu fosse você, pararia com essas ideias socialistas baratas e se casava comigo. Eu ainda tenho muito a lhe oferecer, uma vida confortável, por exemplo.

- Pois é meu caro pastor, em nossa sociedade tão conservadora e elitista, todos que querem ajudar o pobre ou fazer algo pelo social, pelos mais necessitados, são chamados de socialistas, comunistas de forma generalizada. Se você quer saber, Hilário, Jesus não precisou ter templos físicos e dominações para cumprir o que o Pai lhe pediu. O Cristo dos evangelhos mantinha contato em ruas, becos, vales, montes, casas, além de no templo com gente real e sofrida, com os miseráveis e os ricos, com os doentes e os leprosos sem visar nenhum retorno material, a não ser seus corações e amor a Ele!

- Você Yara têm uma visão muito revolucionária. Nunca ganhará nada com isso.

- Ganharei sim, pastor Hilário, a paz em meu coração por estar praticando a caridade, servindo ao próximo sem nenhum interesse e um dia olhar no rosto de Deus com a alegria de ter feito a minha parte.

- Case-se comigo, vai...

Ela apenas lhe deu um olhar e saiu dali.


Yara estava indo embora com alguns amigos. Atravessando uma avenida, viu um senhorzinho caído à calçada. Pessoas passavam por ele como se fosse invisível. O grupo ao ver Yara caminhando em direção do senhor, tentou barrá-la, convencê-la a parar. Ao aproximar, ela o indagou:

- Qual a sua necessidade? O que eu posso fazer pelo senhor?

Ele lhe estendeu a mão e pediu com os olhos mingados:

- Dinheiro? 

- Desculpe-me senhor, mas eu não vou lhe dar dinheiro.

- Me dá comida, tô com fome...

Yara o ajudou a levantar, atravessaram a avenida e o colocou sentado em uma padaria. Todos a olhavam por estar com um mendigo sujo, fedorento e maltrapilho. Ela fez um pedido de uma refeição. O atendente, sem jeito, perguntou-lhe se ela pagaria, explicando-lhe:

- A senhora me perdoa, mas não é legal para imagem da padaria um mendigo sentado em suas dependências... 

Yara o olhou com firmeza, respondendo-lhe:

- Pagarei o lanche do senhor, ele está com fome. Quanto a imagem deste estabelecimento, não sei a que se refere e prefiro não discutir isso. Você pode nos atender, eu vou me sentar com ele, a imagem de seu estabelecimento será menos prejudicada assim?

O atendente virou-se e foi preparar comida para o senhor. Ela nunca tinha visto ninguém se emocionar tanto a comer um pão. O senhor terminou sua simples refeição. A moça foi embora com seus amigos falando em sua minha cabeça. Ela nem os ouvia, pois uma frase ressoava em sua mente do momento de quando ela perguntara ao homem seu nome, ouvindo da boca dele: “A vida me tirou até meu nome, menina!”  

Quando o grupo se afastou da padaria, veio um homem bem-vestido por traz de Yara, pegou em sua mão, dizendo-lhe: “Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, o que Deus preparou pra você é muito maior que você pode imaginar”. 

A moça chorou como se não houvesse amanhã, entendendo a resposta que pedira aos céus.

LEIA O PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem