Ao chegar à primeira casa para pegar o cachorro para passear, a proprietária, Silvia, uma mulher de porte médio, serena, psicanalista de profissão, disse-lhe:
- Yara, eu li o seu post. Emocionou-me muito. Você é uma moça com uma missão muito grande aqui na terra.
Ela apenas deu um sorriso e se foi. Caminhando pelas ruas do bairro, outras pessoas a cumprimentaram pela publicação.
Perto do meio-dia, a moça deixou o último cachorro da manhã em sua residência e voltava para sua casa para almoçar, quando viu uma menininha de uns três anos suja, sentada na calçada chorando baixinho. Ao seu lado sua mãe dormia profundamente.
Yara não teve dúvidas, agachou-se em frente da menina, perguntando-lhe com ternura:
- Oh meu anjinho, qual a sua necessidade? O que eu posso fazer por você?
- Tô com fome. Hoje não comi nada...
A moça correu rapidamente a um restaurante ali perto e, usando o dinheiro que havia ganhado naquela manhã, comprou marmitas, alguns doces, pacotes de bolachas, águas minerais.
Voltou ao local onde estava a menininha, deu-lhe o que comer a ela e sua mãe. Sentou-se ao seu lado e, pegando uma das marmitas, também se alimentou por ali, conversando e brincando um pouco com aquela criança, tirando-lhe alguns sorrisos.
Naquele momento Yara se lembrou de dois versículos de Deuteronômio 26: “12. Quando acabares de separar todos os dízimos da tua colheita no ano terceiro, que é o ano dos dízimos, então os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas portas, e se fartem; 13. E dirás perante o Senhor teu Deus: Tirei da minha casa as coisas consagradas e as dei também ao levita, e ao estrangeiro, e ao órfão e à viúva, conforme a todos os teus mandamentos que me tens ordenado; não transgredi os teus mandamentos, nem deles me esqueci”
Uma hora se passou e Yara teve que voltar ao serviço. Deixou alimento suficiente para suprir às necessidades daquela criança e sua mãe por alguns dias.
Já no final da tarde, quando passeava com o último cachorro do dia, a moça resolveu dar uma volta pelas ruas ali por perto à procura daquela menina, só que não há encontrou...
À noite em seu quarto, Yara viu que seu post havia sido compartilhado na página da comunidade de seu bairro e muitas pessoas comentavam positivamente. Lembrando-se da menina da hora do almoço e motivada pelo que as pessoas comentavam, ela em um relance escreveu:
“Fico muito feliz em ver que há pessoas que pensam iguais a mim. Em vez de tocarmos esses pobres humanos de nossas ruas, lanço um desafio. No domingo, na hora do almoço, vamos nos encontrar em nossa praça principal, levando comidas e outros objetos para eles. Independente de qual seja a sua crença, como eu já disse, a caridade não precisa ser apenas terceirizada”.
Postou institivamente, assustando-se em seguida com o seu próprio ato: “Meu Deus, o que foi que eu fiz?”.
Em instantes algumas pessoas começaram responder, aceitando o desafio.
A moça foi ao culto de meio de semana. Ouviu a mesma pregação de prosperidade e busca de bens materiais por meio da fé. Logo após, foi à secretaria ajudar a contar e registrar a coleta. Estava novamente sozinha, quando o pastor Hilário entrou e lhe pediu:
- Yara, posso conversar um pouco com você?
- Sim pastor, no que posso lhe ajudar?
Sentaram-se nas poltronas e ele foi direto ao assunto:
- Como você sabe, sou um jovem pastor e tenho pela frente toda uma carreira eclesiástica. Mas um pastor precisa ter ao seu lado uma esposa de bom testemunho e dedicada à obra do Senhor. Já há algum tempo eu venho reparando você, seu testemunho e amor à igreja. Então eu quero lhe fazer um pedido. Case-se comigo?
- Casar contigo!?? – Assustou-se Yara: - Nem se quer somos namorados. E demais, eu acredito que a união de um casal precisa vir de Deus e no momento e com a pessoa certa, Ele tocará o meu coração e tudo acontecerá naturalmente, como precisa ser...
- Yara, você não está compreendendo. Eu estou crescendo rápido no ministério. Tenho muitos planos de prosperidade. Posso lhe oferecer uma vida de conforto, uma boa casa, filhos, viagens, enfim... Quantas moças de nossa igreja gostariam de estar recebendo esse mesmo convite?
- Pastor Hilário, eu fico honrada pela sua admiração por minha pessoa e pelo convite de casamento. Mas não me leve a mal. Eu prefiro esperar e ter a certeza da porção que Deus tem para a minha vida.
- Pense um pouco, irmã Yara.
No domingo, ela foi mais cedo para praça. Esperou por meia-hora e ninguém aparecia. Já acreditava que aquilo não daria certo. Até que suas amigas de igreja chegaram com algumas coisas nas mãos. Em seguida, senhoras saindo da missa das onze horas, aproximaram-se trazendo doações. Pouco tempo depois, um pessoal entre homens e mulheres, chegou e um senhor de cabelos grisalhos lhe disse:
- Eu e meus irmãos aqui somos do centro espírita do bairro e queremos trazer nossas contribuições aos nossos irmãos em situação de rua. Espero que vocês não se importem.
- Claro que não, meu senhor. A caridade não pode jamais estar atrelada a credos religiosos. Todos vocês são muito bem-vindos – respondeu Yara em um sorriso.
Já havia um bom número de pessoas, quando encostou uma van de um restaurante dali de perto. O motorista desceu e foi ter com Yara:
- Moça, pediram-me para lhe entregar cinquentas marmitas para vocês aqui.
Yara, emocionada, disse-lhe:
- Poxa, agradeça o dono de seu restaurante por nós.
- Sim, mas não foi ele quem mandou. Uma pessoa passou por lá mais cedo, pagou e pediu para entregar.
Foi uma tarde linda. Muitas das pessoas necessitadas receberam alimentos, roupas, medicamentos. Algumas assistentes sociais voluntárias os orientavam a procurar ajudas em órgãos oficiais. Houve até pessoas que ofereceram algumas oportunidades de serviços. Advogados se ofereceram para regularizar os documentos ou ajudar aos que não possuíam, para deixarem de ser cidadãos invisíveis perante a sociedade.
Todos foram se dispersando, até que Yara ficou sozinha com aquele homem que estava sempre sentado pelos bancos. Não hesitou em lhe dizer:
- Legal que você veio nos ajudar. Fiquei contente.
- Eu só quis fazer a minha parte.
- Afinal, qual o seu nome?
O homem fez uma pausa, respondendo-lhe:
- Rubens...
- Prazer Rubens. O meu é Yara.
- O prazer é todo meu. Bem, com sua licença, preciso ir. – Ele ia se afastando, quando virou para traz, completando: - Foi muito bonita sua iniciativa...
Chegando em seu quarto, ela não se conteve. Empolgada, ligou o computador e escreveu um longo texto narrando tudo que se passara naquela tarde. Os ganhos e a satisfação nos olhares dos que foram assistidos.
Após o culto da noite, na saída da igreja, várias pessoas vieram conversar com ela. Cumprimentá-la pela iniciativa. Uma senhora chegou a dizer:
- Sabe Yara, por muito tempo eu não me atentei a isto. Caridade não é só o simples gesto de doar dinheiro. Ela tem muito mais valor quando praticada por nossas próprias ações.
Yara explicou:
- Vejam bem irmãs, em nenhum momento eu estou pregando contra as coletas. Elas são fundamentais para que possamos manter nossas igrejas, as despesas, obras sociais, escolas bíblicas, missões de evangelizações. O que proponho é irmos além, que também pratiquemos a caridade pelas nossas próprias ações como era a igreja primitiva nos três primeiros séculos do cristianismo. E depois, os necessitados em diversas esferas são muito maiores que os obreiros de nossas igrejas. E se todos nós tivermos atitude de praticarmos a caridade por nós mesmos, diminuiremos a carga dos obreiros, liberando-os para focarem nas atividades eclesiásticas.
Em casa, Yara papeou um pouco com seus pais, ainda empolgada pelo que tinha feito. Foi dar uma olhada em sua rede social, tendo uma enorme surpresa. Seu post havia viralizado, muitos comentários positivos, compartilhamentos. Foi dormir de coração leve!
Os dias foram passando e aquele post continuava viralizando positivamente. Chegavam mensagens de pessoas ali das redondezas perguntando-lhe se domingo haveria a mesma ação. E ela respondia:
“Não precisamos esperar até domingo. Todos os dias são dias para praticarmos o amor ao próximo. E não há mistérios para isso. A caridade sempre se realiza quando chegamos perto de alguém que realmente precisa de nossa ajuda e lhe perguntamos: Qual a sua necessidade? O que eu posso fazer por você?”.
Na quinta-feira, Yara passeava com um cachorro, quando viu aquele homem no banco da praça. Resolveu ir até lá. Chegando perto, um senhor bem-vestido com um terno, aproximou-se dele, entregando um envelope, dizendo em um sorriso amigo:
- Capricha!
- Obrigado, doutor.
- Bem, estou atrasadíssimo para uma audiência no fórum – disse o senhor, partindo.
A moça continuou caminhando em sua direção, sentando-se ao seu lado.
- Bom dia, Rubens.
- Bom dia, Yara – respondeu ele sem jeito, colocando o envelope no bolso: - Bonito cachorro.
- Sim, eu passeio três vezes por semana com ele.
- E aí, você já planejou a próxima ação para ajudar aos moradores de rua?
- Pra falar a verdade, eu nem pensei nisso, foi tudo tão surpreendente...
- Mas é bom pensar, Yara, é uma missão muito bonita e nobre de sua parte. – Rubens levantou-se: - Com sua licença, preciso voltar à pensão, está na hora do almoço.
Ele estava se afastando, quando a moça lhe perguntou alto:
- Se eu fizer outras ações, você aparece para nos ajudar?
- Quem sabe... – Respondeu o homem, continuando a caminhar.