Capítulo 1 - A CARIDADE NÃO PRECISA SER APENAS TERCEIRIZADA

Naquela noite de domingo, Yara estava sentada no banco da igreja lotada. Hilário, um moço alto, loiro de olhos azuis, jovem pastor com grande dom de oratória, dizia em tom alto, forte, quase aos saltos:

- Você é filho ou filha do Deus altíssimo. O dono de tudo que há na terra. Merece o melhor. Deus tem que te dar o melhor. Ore por aquilo que você mais deseja dizendo assim, “Senhor, eu sou seu filho ou filha, o Senhor tem que atender o meu pedido”...

Quase todos pulavam pelos bancos em manifestações altas. Menos àquela moça, quase que incomodada com tudo aquilo.

Ao terminar o culto, Yara foi para a secretaria da igreja. Junto com mais cinco membros, ela tinha o ministério de ajudar a contar o dízimo, registrar os valores no livro-caixa. E sempre era a última a sair, apagar as luzes e fechar a secretaria.

Como demorou mais um pouco, naquela noite ela saiu sozinha caminhando pela rua com sua estrutura alta, pele morena, rosto redondo, cabelos pretos, lisos e cumpridos. De vestido, abraçada com sua bolsa e uma Bíblia, foi reparando alguns moradores de rua que dormiam cobertos pelas calçadas. Lançou um olhar de compaixão por eles, pensando: “Somos todos filhos de Deus...”

Chegou em casa onde morava com seus pais por ser a única filha solteira, aos vinte e nove anos de idade.  Depois de um lanche à cozinha, foi para o seu quarto, um local com muitos livros. Ela lia demais e sonhava em ser médica veterinária, embora não tivesse condições financeiras para isso. 

Pegou um livro de cabeceira, escrito por Jonathan Edwards, pregador congregacional, teólogo calvinista e missionário aos índios americanos no século 18, lendo um bom trecho, onde uma frase destacou-se aos seus olhos: “A caridade e a vida e a alma de toda religião, sem a qual todas as coisas consideradas como virtudes são vazias e fúteis. O amor deve dispor a todos os deveres, seja para com Deus, seja para com o homem. Assim, o amor é a raiz, a fonte e a abrangência de todas as virtudes. Ele é um princípio que, se bem implantado no coração, sozinho será suficiente para produzir toda a boa prática; e toda a disposição correta para com Deus e para com o homem que se acha resumida nele e provém dele como fruto da árvore, ou a corrente da fonte. Portanto, amar é a própria índole e espírito de um cristão; o amor é a suma do cristianismo. Sendo o amor algo tão imenso e distintivo, então os que se professam cristão devem viver em amor e transbordar nas obras de amor, pois nenhuma obra é tão necessária como as do amor”.

Preparando-se para dormir, abriu a Bíblia, lendo o seguinte versículo: “E, ante o progresso crescente da iniquidade, a caridade de muitos esfriará”, Mateus 24, versículo 12.

Lembrou-se das palavras do pregador de sua igreja, não sentiu nada. Lembrou-se dos moradores de ruas dormindo pelas calçadas, sem nem saber se eles tinham se alimentado naquele dia, sentindo tristeza em seu coração.



Na manhã seguinte começou o seu trabalho de buscar cachorros em suas residências e levá-los à passear.  Ela era dog walker, uma profissional que passava o dia passeando com cães alheios. Passeios que aconteciam uma vez por dia, em média, uma hora, com remuneração diária ou mensalmente. O principal problema de quem cria cachorros nas cidades grandes é arrumar tempo livre para aquela volta diária com os bichos.

Chegou à praça de sempre, um quarteirão inteiro com muitas árvores, alamedas, gramas aparadas, brinquedos, muitas crianças brincando, idosos caminhando, proprietários passeando com seus animais de estimação.

Pelos bancos de cimento pessoas sentadas, alguns casais de namorados. Sempre lhe chamava atenção um homem negro, cabelos curtos, vestido com roupas novas, aparentando meia-idade que passava o dia sentado sozinho observando a tudo e a todos. Às vezes ele entrava e saía de uma pensão ali em frente. Outras vezes, aparecia um senhor de terno e gravata e lhe entregava um envelope, trocavam rápidas palavras e partia apressado.


Naquela noite teria uma reunião da associação de moradores do bairro. Yara foi representando seus pais. Após vários assuntos, a mulher que presidia, disse:

- Pessoal, agora como último item da pauta, temos que falar de um assunto chato. Nosso bairro tem sido invadido por várias pessoas em situação de rua. Temos que tomar alguma providência.

- Talvez impedir que eles circulam pelas nossas ruas – propôs um senhor sentado no canto: - Podemos dar um jeito deles irem para outras regiões da cidade.

Yara não se conteve, levantando a voz:

- É isso mesmo, senhores, expulsar essas pessoas do nosso espaço público é a melhor solução? Olha aqui, nesta reunião temos católicos, evangélicos, crentes, espíritas, enfim... Cadê o nosso espírito de caridade?

- Calma mocinha, aqui não estamos em uma questão teológica – disse a mulher que presidia de forma autoritária: - E além do mais, esses mendigos são um problema de políticas públicas, não nosso...

Uma senhora com vestidos e cabelos longos se expôs:

- Todos os meses eu já dou dinheiro na coleta da minha igreja. Eu já faço a minha parte na caridade...

Terminada a reunião, Yara levantou-se e estava saindo, quando viu perto da porta aquele homem que ficava sentado o dia inteiro na praça. Não se conteve, dirigindo algumas palavras a ele:

- O senhor por aqui, que surpresa.

- Sim, a dona da pensão onde moro me pediu para representá-la. Agora com sua licença, preciso ir – saindo rapidamente.


Mais tarde, no escuro de seu quarto, frente ao computador vendo sua rede social, Yara não se conteve, escrevendo um post:

“Hoje ouvi pessoas dizerem que a melhor forma de resolvermos a questão de pessoas em situação de rua em nosso bairro será expulsá-los daqui. Naquela reunião estavam pessoas de quase todos os credos religiosos. E ninguém se atentou para o que diz Romanos 13, versículo 10: ‘A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é o pleno cumprimento da lei’.
Também ouvi dizer que essas pessoas são problemas de políticas públicas. A velha mentalidade de que por pagarmos impostos, podemos acomodarmo-nos para que governantes façam tudo por nós.
E o pior, uma senhora chegou a dizer que já dava dinheiro para obra da piedade de sua igreja. A que cúmulo chegamos, a de pagar para que outras pessoas nas esferas governamentais ou religiosas pratiquem a caridade por nós.

Não, eu não posso concordar com isso. Não posso acreditar que estamos pagando para que outras pessoas façam o que Jesus pediu para nós. Concordo plenamente que temos o dever cristão de por meio das coletas, mantermos as igrejas e as obras de onde professamos nossa fé. Mas creio que temos que ir muito mais além. A caridade não precisa ser apenas terceirizada”.

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Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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