Ainda naquela manhã, pensando no problema de Márcia, conversei com Celinha sobre o fato da superproteção. Ela sugeriu uma saída:
- Acho que devemos ir até a casa dela bater um papo com seus pais. Você quer vir conosco, Vítor?
- Eu...?
Fiquei surpreso com o convite.
- É, assim você também conhece o outro lado dos nossos alunos que é a casa paterna.
- Sim, vamos...
Segundo Celinha me explicou em relação às pessoas iguais a Márcia, o contato social começa dentro do próprio lar. Dependendo da maneira que o jovem com deficiência for criado, se os pais buscarem sempre derrubar os conceitos de "inferioridade", estarão, assim, colaborando para a formação da própria personalidade de seu filho. Talvez essa seria a raiz do problema comportamental de Márcia.
Celinha, Vânia e eu aproveitamos que Márcia estava no Centro e fomos até sua casa. Só encontramos a sua mãe que nos recebeu simpaticamente, o pai havia ido trabalhar.
Ao nos convidar a entrar, perguntou-nos:
- Mas a que devo a honra dessa visita?
E Vânia, educadamente, respondeu-lhe:
- Nada de especial. É que sempre gostamos de visitar as famílias de nossos alunos. Porém, antes de mais nada, quero apresentar o professor Vítor.
- Muito prazer, professor, a Márcia comenta muito do senhor.
- O prazer é todo meu...
- É, vocês devem ter muito trabalho...
Celinha tomou a palavra:
- Não, pelo contrário. Sempre é um prazer para nós essas visitas. Apesar de muitas vezes encontrarmos casos que nos entristecem.
- Não diga! - Exclamou a mãe, servindo um café e sentando-se para conversar.
Elas, como psicólogas, começaram a contar algumas histórias no sentido de conscientizá-la. Vânia tomou a iniciativa e aproveitei para ouvir.
- Sabe, conhecemos uma família revoltada por ter um filho com deficiência. Isso se refletiu na criança, tornando-a rebelde e revoltada para o resto de sua vida.
E Celinha deu continuidade ao relato:
- Tem outro caso que a superproteção era tanta, que os pais nem deixavam o jovem ter personalidade própria. Quando fazíamos alguma pergunta, a sua mãe até nisso intrometia, sem ao menos deixá-lo responder. Ele sempre estava preso em seu próprio lar, só saindo de casa para ir ao Centro e vice-versa.
A mãe de Márcia ouvia tudo muito atenta. Celinha continuou o caso:
- Ele nunca tinha liberdade. Sabe o que aconteceu? Tornou-se um revoltado contra a própria família quando descobriu que o tempo passou, seus amigos foram todos felizes nas suas juventudes e ele, não.
Vânia pôs a xícara de café em cima da mesa de centro e emitiu a sua opinião sobre esse caso:
- O que essa família deveria ter tido, era a consciência de que, apesar do filho ter uma deficiência, ele era um jovem como outro qualquer e precisava ser tratado como tal. Hoje ele poderia ser um rapaz, ou melhor, um homem equilibrado e vivendo muito bem em sociedade, em vez de ser uma pessoa revoltada e despejando toda a culpa na própria deficiência.
Segundo li posteriormente, a falta de experiência dos pais pode fazer o filho se sentir um rejeitado dentro do próprio ambiente em que vive. Dependendo das atividades dos pais, a criança ou o jovem com alguma limitação poderá sentir-se inibida diante de seus genitores, não conseguindo assim, conversar com sua família e expor seus problemas e necessidades. Desse jeito, os pais muitas vezes pensam que estão agindo de maneira correta.
A palavra voltou à Celinha:
- A superproteção sempre foi muito negativa e ainda mais prejudicial na reabilitação. Os indivíduos com certas limitações têm que se conscientizar que são pessoas normais e ser encorajadas a viver como tal.
Nesse momento, para ver a reação da mãe de Márcia, Vânia disse-lhe:
- Mas podemos ver que esse tipo de problema não acontece aqui em sua casa. A Márcia sempre teve uma educação exemplar.
- Realmente, nós sempre demos uma boa educação e tratamos Márcia como os demais filhos.
Isto que sua mãe acabara de nos dizer, embora nem sempre seja verdade, é muito importante. Se o jovem for tratado não com superproteção, porém com alguns cuidados especiais dependendo do seu tipo de limitação, ele certamente se sentirá ao mesmo nível das outras pessoas e de seus irmãos. Assim não desenvolverá o "complexo de inferioridade", deixando fluir naturalmente suas aptidões.
- Bem, temos que ir. Obrigada pelo café e esperamos que continue tratando sua filha como uma pessoa normal.
- Sim, pode deixar...
Sabíamos no entanto, que ela não agia com um comportamento normal em relação à Márcia, sempre superprotegida e impedida de ter mais liberdade. Porém, Vânia e Celinha, preferiram não forçar a barra por enquanto, fazendo aquele jogo psicológico. Acreditavam que a partir daquele momento, alguma coisa poderia mudar.