2 - AS INVESTIDAS DE JOÃO

 

Na festa de aniversário de João estão as pessoas de sempre da empresa.  Acontece em um sábado à noite, numa boate com muita animação, bebidas, conversas, sorrisos, danças. Murielli, como de costume, prefere ficar numa mesa, numa conversa informal. Uma seleção de músicas românticas começa a tocar. O rapaz aproxima-se:

- Pelo menos, no dia do meu aniversário, você não vai rejeitar dançar comigo, não é Murielli?

- Tudo bem, João. Vamos lá.

Dirigem-se ao centro da pista. Ele, pedindo licença como um cavaleiro, a segura e começam a dançar. Concentrados na melodia, as notas da canção parecem criar um clima para que ele cometa um atrevimento, tentando roubar um beijo da moça.

- Você ficou louco? - Indaga Murielli, empurrando-o.

- Murielli, não suporto mais a vontade de "ficar" com você.

- "Ficar" comigo????

- É, por que não? Você é uma mulher tão atraente, mexe comigo. E hoje em dia isto é tão normal.

- Normal para você que deve estar acostumado sair cada dia com uma! - Exclama com raiva: - Mas comigo não, violão. E quer saber do que mais? Para mim a noite acabou.

Murielli passa pela mesa, pega a sua bolsa e sai chorando rumo ao seu carro no estacionamento.

* * *

Muito fiel as suas atividades, Henrique sempre cumpri todos os seus compromissos, mantendo uma visão de mundo positiva, mesmo sendo um profundo conhecedor da realidade. Ideologicamente, acredita numa grande mudança, e para melhor. Participa nos momentos de folga, em sua comunidade de algumas associações, como por exemplo, de pessoas com deficiência. No domingo à tarde, vai para mais uma dessas reuniões da Associação. Na verdade, uma tarde de lazer. Entre conversas com conhecidos, encontra Marcos Antônio, um ex-policial baleado em serviço, que utiliza-se de uma cadeira de roda para a sua locomoção. Sua liberdade e felicidade estão ligadas à existência de sua cadeira, destruindo o imaginário coletivo, onde muitas vezes as cadeiras de rodas estão associadas ao sofrimento e, não raras vezes, à pobreza. Mas Marcos Antônio mantém um íntimo carinho com a sua, sendo apenas um instrumento facilitador de suas atividades diárias, contribuindo para a sua vida independente. Inclusive, dirige o seu próprio carro adaptado e é com ele que vem até à Associação por morar fora da comunidade.

Entre eles há uma amizade muito forte, sendo confidentes um do outro. Henrique narra-lhe as aventuras e sensações de estar trabalhando numa empresa. A certa altura, diz:

- Cara, lá conheci uma moça tão bonita e educada. Ficou minha amiga.

- Sei, depois vem o namoro, o casamento e os filhos - brinca Marcos Antônio.

- Para com isso... É apenas uma amizade.

- Meu pai e minha mãe também eram amigos. Hoje, olha eu aqui!!!

Aquela brincadeira ficou fixa na mente do rapaz. E, justamente naquela noite, ele tem um sonho diferente. Está num jardim muito florido, quando Murielli, chegando toda de branco, sem dizer nada, aproxima-se com ternura e se abraçam fortemente...

* * *

Durante a próxima manhã de trabalho, Murielli, voltando do toalete, caminha pelo corredor, quando se depara com João.

- Murielli, preciso lhe falar um minutinho.

- Tenho que voltar para minha sala - acentua indiferente.

- Deixe-me explicar - insiste, segurando-a pelo braço: - Àquela noite exagerei na bebida e passei um pouco do limite. 

- Um pouco não, totalmente - afirma, livrando-se da mão do rapaz: - Acho bom voltarmos ao trabalho. Não tenho tempo de ficar de conversinha pelos corredores. Com sua licença...

Volta a caminhar em passos firmes. Ao passar pela porta da sala de Henrique, sente vontade de entrar, abrindo-a.

- Dá licença, senhor programador...

- Murielli, por favor, entre.

- Vim ver como vão as coisas por aqui.

- Tudo calmo. Estou fazendo o projeto e a planta do nosso programa para depois começar desenvolvê-lo. 

- Sabe que você tem muito futuro nesta área. Por que você não tenta fazer uma faculdade?

- Sinceramente, tenho como objetivo de vida, progredir ainda mais em minha carreira. Entrar numa universidade sempre foi a minha meta, mas não consigo, devido à dificuldade com algumas matérias, o que me atrapalha no vestibular.

- Mas se eu fosse você, continuaria tentando - sugeriu a moça, olhando no relógio: - Por falar nisso, já está na hora do almoço. E eu aceito a sua companhia - diz num sorriso amigável. 

Viver em grupo é uma necessidade de nós seres humanos. E nada expressa melhor isso do que a amizade. Durante todos os períodos de nossas vidas, temos amigos; infância, adolescência, idade adulta e velhice. Poderá haver uma ciranda, principalmente em cidades grandes, onde conhecemos inúmeras pessoas que entram e saem de nossas vidas de maneira mágica, se assim possa se dizer; alguns até por interesses profissionais. Embora nem sempre os mesmos, mas sempre é importante a figura dos amigos. 

Todavia, há aqueles amigos, geralmente constituídos nas duas primeiras fases de nossas vidas, que entra ano e sai ano, estão sempre presentes em todos os momentos de nossas vidas. E como é bom essa presença! Pois para uma pessoa com deficiência, esse círculo de amizade torna-se ainda mais valioso, uma ajuda inevitável... 

Duas reflexões podem ser feitas neste sentido. Há aquelas pessoas que nascem ou adquirem uma deficiência no início de suas vidas e há aquelas que adquirem ao longo do percurso, principalmente por acidentes. No primeiro caso, a pessoa já cresce consciente de sua limitação, desafiando seus próprios limites; realiza tudo com naturalidade, escola, brincadeiras, crescendo entre a sua turma e participando normalmente de todas as atividades de acordo com sua condição. Já aquele que adquiriu uma deficiência, terá que passar por um longo processo, começando pela aceitação de sua nova condição, como lidar com isso, "reaprendendo" a viver com sua nova realidade e dentro de suas possibilidades. Esse, notará naturalmente o afastamento de seus amigos comuns, não por maldade, mas por estarem dando prosseguimentos em suas vidas rotineiras. Sobrarão sim, alguns poucos e sinceros amigos, que o acompanharão em seu processo de reabilitação e, mesmo sem saberem, terão uma participação praticamente invisível, porém fundamental. Serão eles os principais responsáveis na reintegração social dessa pessoa, a partir do momento que passarem a aceitá-la e incentivá-la a participar em suas atividades, mesmo as mais simples como passeios, por exemplo. 

Pode parecer fácil ser amigo ou amiga de uma pessoa com deficiência, mas não é tão simples assim. Geralmente, uma pessoa que tem alguma limitação, dependendo do grau e tipo, ao sair em público, torna-se o centro das atenções, motivo de curiosidade natural de todos. Dessa maneira, aquele que o acompanha, também será o centro de muitos olhares. Em alguns casos, a pessoa poderá precisar de auxílio para realizar algo, ao entrar em algum lugar, certamente os amigos não medirão esforços, tendo boa vontade para tal. Importante também, respeitar as suas limitações, como por exemplo, numa caminhada, andar dentro do seu ritmo. 

A pessoa tem que ter muita cabeça para isso, livre de preconceitos, além de ser algo de enriquecimento e conhecimento à convivência e a alma humana! 

E Murielli demonstra muita personalidade e segurança na amizade que está construindo com Henrique.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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