3 - O REENCONTRO NO BAR 50!

Perto do apartamento de onde Almir mora, há um bar noturno de esquina, pertencente a um velho hotel de luxo desativado. Chamado “Bar 50!”, inaugurado em 1951, tornou-se um dos pontos de mais charme e estilo da cidade, onde passaram personalidades, como Dick Farney, Johnny Alf, Zé Ketti, Claudete Soares, Alcione, além de Nat King Colle, um dos maiores nomes do jazz americano. Uma verdadeira viagem ao tempo, o clima dos anos dourados, conhecido como a “era de ouro do rádio” e depois “o berço da bossa nova”, ali no velho centro histórico de São Paulo.

Naquela noite, ele entrou lá novamente, sentou-se em uma mesa de canto, começou a beber sozinho. O mesmo hábito solitário e o mesmo local que ele frequenta a mais de duas décadas. O ambiente com luz baixa e uma música melancólica já no saguão. Bancos e sofás de couro vermelho, mesas de madeiras escuras, muitos recortes de jornais emoldurados e pendurados por todas as paredes. Um mezanino e uma pequena pista de dança a muitos anos esquecidos.

Assim como Almir, todos os demais frequentadores ali, pessoas em estado de inércia e tédio, características marcantes de um indivíduo melancólico. Viver na melancolia é como se preencher de um vazio. Pessoas que não se revoltam, não se agitam externamente, não lidam com crises e surtos. Muitos desses melancólicos pareciam permanecer ligados a um objeto de amor de maneira patológica, mesmo após a morte ou perda definitiva desse objeto. Na melancolia, a pessoa é capaz de perder o objeto, mas jamais abre mão do laço que o liga ao amado.

Em um canto, o piano repousa em silêncio. Tudo parece uma interação única, todos entregues ao mesmo contexto. Atores que, confunde com o real e o fantasmagórico, parecem viver ou reviver ali em seus mundos particulares e mentais, histórias de encontros e desencontros amorosos. Quem pode dizer que nunca viveu encontros e desencontros amorosos? E, deixando nossas imaginações fluírem, quantas histórias de sabores e dessabores àquelas paredes assistiram silenciosamente nos tempos gloriosos daquele local, hoje esquecido no meio da grande metrópoles paulistana.

Após um tempo, entra no bar uma mulher magra, vestido de alça estampado. Tatuada e cabelos grisalhos. Vai ao balcão e pede um drinque. Minutos depois e alguns goles, ela começa a observar a todos ali em volta. Fixa o olhar na mesa onde está o representante comercial. A vitrola toca “nada além / nada além que uma ilusão / é demais para meu coração / acreditar no amor...” A mulher pega seu copo e caminha até ele. Aproxima-se, perguntando-lhe:

- Almir, é você?

- Desculpe-me, mas não estou lhe reconhecendo. – Diz ele simpaticamente.

- Sou a Cátia, eu fiz o colegial com você aqui em São Paulo. Digamos, já fazem algumas décadas.

Os dois riem. Ele fica feliz em reencontrá-la, convidando-a para se sentar. Começam um papo descontraído. Até que ele pergunta-lhe:

- E o que você fez de sua vida, Cátia?

- Eu me tornei uma terapeuta holística. 

- O que é isto, Cátia?

Ela responde-lhe rindo:

- A Terapia Holística é um conjunto de terapias que visam a promoção a saúde, a prevenção de doenças e agravos, alívio de sintomas e cura, através do cuidado integral do ser humano.  E você Almir, o que me conta?

- Não muitas coisas. Logo depois da escola, comecei a ser representante comercial aqui na cidade de uma linha de móveis planejados. A fábrica é de um amigo meu lá de onde eu vim.

- Sim, eu me lembro que você na época havia acabado de chegar de uma cidade do interior do Paraná. Era um moço simples, tímido, muito reservado de poucas amizades.

Por já ter tomado algumas cervejas, Almir se solta um pouco:

- E continuo o mesmo. O negócio do meu amigo cresceu e hoje chefio a unidade aqui na cidade. Fora isso, minha vida só se resumiu em trabalho, vir sempre a este mesmo bar anos após anos. Ou voltar para o meu apartamento, onde morava só com minha mãe. Com o tempo, minha irmã e cunhado começaram a ter dificuldades financeiras e eu os abriguei junto com meus dois sobrinhos. Se eu pudesse mudar minha história, na minha mocidade gostaria de ter tido vida noturna, frequentado bares, restaurantes, boates, conhecido um número incontável de pessoas de diferentes tipos, vivenciado muitas histórias, a ilusão e desilusão de aventuras amorosas, jantares românticos, dançar coladinho, colecionado muitas personagens para os enredos de minhas recordações...

- Até agora Almir, você falou de todas as coisas que deixou de fazer. O que você faria se não existissem limites? Se pudesse conquistar qualquer coisa em sua vida, o que seria?

* * *

  Já no início da madrugada, o representante comercial chega em seu apartamento. Sua mãe, irmã, cunhado e sobrinhos já dormem. Em silêncio, ele vai se deitar em seu quarto, que de tão pequeno, só cabe uma cama e uma cômoda.

Deita-se e começa a recordar do tempo de escola. Quando Cátia era conhecida como a garota porra-louca de sua turma. Não media esforços para uma aventura, uma delinquência, mas sempre sem prejudicar ninguém. A moça mais namoradeira e disputada do colégio, justamente por ser a mais espontânea com seus sentimentos de liberdade e sem medo de ser ela mesma. 

Até ele mesmo, à época, teve vontade de namorá-la. Cátia nunca soubera disso. Embora da mesma classe, eles eram de grupinhos diferentes. Aliás. Almir nem pertencia a nenhum grupo.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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