3 - RECOMEÇAR

 

Mesmo fragilizada, Denise sentiu uma enorme vontade de dar a volta por cima. Os dias foram correndo; a vida lá fora de seu quarto lhe chamava para continuar ser personagem desse eterno cotidiano que é viver! Certamente com algumas modificações. Não um recomeçar de novo; mas um recomeçar do ponto em que parou, embora de algumas formas diferentes com perdas e descobertas para sua nova situação. Sentiu também necessidade de ser apoio para seus pais. E, ao chamá-los em seu quarto, comunicou-lhe:

- Papai, mamãe... Não devemos ficar triste. Devemos sim, dar a volta por cima; aceitar a realidade. A vida continua. Nós temos que aceitar o fato e vivermos. Eu sei que não vou ter mais aquela vida que tinha, mas terei uma nova jornada pela frente e vou começá-la de cabeça erguida.

- Tem razão filha – concordou seu pai. – Você vai vencer nessa nova jornada. Eu farei de tudo possível para que você vença.

- Tenho certeza disto, papai. E a senhora mamãe, não diz nada?

- Filha. Lembrei agora, tenho uma panela no fogo. Vou vê-la, dá licença...

Donana saiu do quarto. Denise percebeu alguma coisa.

- Ela não aceita isto, né papai?

- Filha, tente entender sua mãe. Ela não quer ver a realidade, mas vai acabar entendendo. É duro tanto para ela como para mim. Sei que entende filha, pois você é uma menina inteligente.

- Sim, papai, eu entendo. Mais cedo ou mais tarde ela vai aceitar o fato.

- Isso filha. Agora eu tenho um presente pra você!

- O que é, papai?

- Espere um pouquinho, já volto.

Valmir saiu do quarto, voltando em minutos, empurrando algo.

- Aqui está. – Era uma cadeira de rodas: – Nunca imaginei ter que lhe dar isto. Mas aqui estão suas novas pernas.

- Ó papai, que bom... Pensei que iria viver muito tempo nesta cama.

- Não filha, agora você pode andar livre pela casa.

 Com o passar dos dias, Denise começou dominar sua cadeira e a passear pela casa, que sofreu algumas modificações, principalmente, mudanças de móveis de lugares, visando permitir sua livre locomoção.

Certa manhã, sua mãe estava na cozinha e ela foi até lá.

- Mamãe...

- Sim, o que você quer?

- Onde o papai foi?

- Até o curral, por quê?

- Nada não, mamãe. Vou esperar ele na varanda.

 Ao voltar à sala, Denise viu um passarinho em sua gaiola. Rodando sua cadeira, ela foi até ele, dizendo: “Agora sei os seus sentimentos, meu amiguinho. Como você está preso em sua gaiola, eu também estou presa nesta cadeira de rodas. Mas isso não tira o seu ânimo de viver, pois posso ver isto em seu canto. Apesar de tudo, nós dois amamos isso que chamam de vida”!

Seu pai vinha chegando, quando viu Denise na varanda.

- Oi filha, está tomando um pouco de ar puro?

- Não papai, estou esperando o senhor para fazer uma pergunta.

- Sim, filha, pode fazer?

- Pai, eu queria voltar à escola. O senhor teria paciência para me levar e buscar todos os dias?

- Bem Denise. Isto iria atrapalhar um pouco minhas atividades aqui na fazenda. E além disso filha, você já perdeu muito tempo de aula. Vai ser difícil de recuperar. Será que você consegue?

- Sim papai, sei que vou conseguir. Deixe-me tentar!!!

- Se você quiser filha, eu posso lhe arrumar um professor particular?

- Não papai, eu quero estudar como todo mundo... Por favor, não me decepcione...

- Sim filha, prepare-se. A partir de segunda-feira você voltará para escola. 

* * *

 Para completar a sua felicidade naquele dia à tarde, Denise recebeu a visita de suas três amigas.

- Sua mãe nos disse que você quer voltar a estudar, verdade?

- Verdade, Sâmara. O que vocês acham, meninas?

- Eu acho ótimo – responde Lena.

- Eu também – concorda Tininha.

- Será que eu me recupero?

- Recupera sim, Denise – diz Sâmara: – E quando você começa?

- Segunda. Sabe meninas, sei que será muito duro recomeçar. Mas para lutar, estou disposta. E espero poder contar com vocês.

Todas disseram lhe ajudar em tudo que puderem.

- Obrigada minhas amigas... – Agradece Denise: – Vocês incentivam-me a viver! 

* * *

 Na segunda-feira, Valmir levou a filha à escola... No pátio, enquanto sentada na cadeira de rodass, Denise esperava o sinal para entrada, percebeu que a garotada olhava-a com curiosidade. Os olhos curiosos olhavam diretamente para ela. A princípio ela se perturbou com aquilo. Sâmara, percebendo, disse-lhe:

- Daqui prá frente será sempre assim, Denise. Eu acho que você não deve ligar e aceitar isso com naturalidade.

- É Sâmara. Você tem razão. Por onde eu andar, sempre terá curiosos!

Bateu o sino e todos formaram as filas. Sâmara empurrou a cadeira da amiga até à classe. Lá, a professora de português, dona Cleuza, tirou a primeira carteira da frente, Sâmara pôs Denise e a professora colocou a carteira à frente da cadeira de rodass que não se encaixou direito.

- Sinto muito Denise. Mas por enquanto terá que ser assim – lamentou a professora.

- Está ótimo! - Exclamou Denise.

 A aula já havia começado, quando a diretora entrou à classe. Todos se levantaram por educação.

- Podem sentar-se – diz a diretora: – Denise, estou aqui para dizer que você é bem-vinda em nossa escola. Não só por parte da direção, como de todos os funcionários e de seus colegas.

- Obrigado, Dona Norma - agradece Denise.

- Eu e os seus professores, fizemos o possível para atrasarmos a entregas das notas das provas, para dar tempo para você fazê-las. Só que não foi possível. Há ainda pela frente três exames bimestrais.

- Tenho certeza que você vai se recuperar.

- Irei fazer o possível, Dona Norma.

- O que você precisar, pode contar conosco. Bem, eu vou para diretoria, dá licença e juízo meninada.

 No recreio, os meninos conversam com ela. Depois de um bom bate-papo, um amigo, sem meias palavras, disse à Denise:

- Você mudou, Denise. Agora não é mais aquela pessoa esnobe. Está atenciosa. Conversando com todo mundo. Rindo, brincando. O que aconteceu?

- É... Eu descobri uma nova vida, que eu sufocava dentre de mim!

 Nesse momento, tocou o sino da inspetora Koti. Voltaram para classe. Era hora da aula de geografia. Considerado pela classe como o melhor professor da escola por sua calma, Seu José dos Mapas também era o presidente do jornal da cidade. Ele perguntou à Denise:

- É verdade que você faz poesias?

- Sim, é verdade, Seu Zé.

- Você quer colaborar com o nosso jornal?

- Colaboro. Será uma grande honra para mim.

- Ótimo, Denise. Vai me trazendo as poesias ou poemas, que a gente vai publicando.

 Terminado o primeiro dia de aula. Valmir veio buscar Denise e também levou a sua colega e vizinha de sítio, a Carminha. No caminho, elas conversaram.

* * *

 Os dias foram passando e Donana fingia estar tudo bem, mas ainda não se conformava com o ocorrido. Certo dia, Denise decidiu chamar sua mãe para uma conversa.

- Mamãe, podemos ter uma conversa de filha para mãe?

- Sim, filha – respondeu Donana, parando de lavar a louça, sentando-se à mesa.

- Mamãe, a senhora ainda não aceita a realidade por eu estar nessa cadeira de rodas, não é?

- Eu nunca disse nada, filha...

- Mas demonstra em seus modos. - Sua mãe ficou quieta: - Antes de tudo acontecer, a senhora me tratava diferente. Ensinava-me coisas da vida. Os deveres domésticos. Queria sempre me ver bem arrumada. Até como lidar com os garotos a senhora ensinava-me. Agora não me dá seus sábios conselhos. Nós só dialogamos o necessário. Pó Mãe! A senhora não entende. Depois do acidente, eu continuo sendo sua filha. Agora que estou nessa cadeira de rodas, tudo tornou-se mais difícil para mim. Eu preciso da senhora, mais do que nunca!!!

Donana abraçou Denise chorando.

- Você tem razão. Esse acidente não deveria ter mudado em nada o nosso relacionamento. Te amo filha... Como sempre te amei! 

* * *

 No outro dia, no café da manhã, mais uma surpresa para jovem foi anunciada pelo seu pai:

- Denise, ontem à noite eu e sua mãe tivemos uma conversa e decidimos comprar uma casa na cidade e você e sua mãe morar lá. Assim iria facilitar as coisas para todos. O que você acha, filha?

- Eu acho uma boa, papai. Mas e o senhor?

- Eu iria estar lá todos os dias, ou vocês viriam aqui dar uma arrumadinha na casa. Sua mãe também tirará a carteira de motorista para vocês se locomoverem melhor.

- Pra mim está ótimo, papai!!!

* * *

  Mais tarde, na escola, Denise e suas amigas conversaram.

- Você vem à brincadeira sábado, Denise?

- Acho que não, Samara. Meu pai não iria querer me trazer. E não tiro a razão dele. A semana inteira me levando e me trazendo da escola. Preocupando-se com os problemas da fazenda. Chega o fim de semana ele está esgotado. Deixa pra quando eu me mudar para cidade.

- E quando você vai se mudar?

- Semana que vem... - Respondeu Denise.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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