- Estou cansado, Eliseu – lamentou o dono do bar: - Preciso contratar mais uma funcionária para servir.
- Eu também, trabalhei o dia todo como motorista de aplicativo. Vou tomar só mais essa e partir.
- Você me dá uma carona?
- Vai de novo naquele lugar?
Herbet deu apenas um sorriso. Levantou-se e fechou o bar.
Juntos saíram pelas ruas paulistanas, já com pouco movimento. Dez minutos após, Eliseu parou o carro em uma casa residencial no bairro das Perdizes.
- Não vai abusar cara...
- Pode deixar, sei me cuidar – disse Herbet descendo do carro.
Ele dirigiu-se a um homem que parecia ser um segurança da residência. Disse-lhe algumas palavras e foi autorizado a entrar. Lá dentro era um bingo clandestino, muita gente, fumaças de cigarro em um lugar fechado.
Eliseu ligou o carro e partiu para a região do Baixo Augusta. Conhecida por ser uma tradicional área de lojas de artesanato, decoração, colchoaria, móveis e tapeçaria fina. Mas também uma região de muita agitação noturna e liberdade. Ele entrou em uma daquelas boates, encostou no balcão e pediu uma bebida. Logo depois, uma das dançarinas aproximou-se. Conversaram rapidamente e ela o puxou pelas mãos, subindo as escadas.
Chegaram a um quarto velho, mal iluminado. A moça começou a tirar a roupa. Eliseu apenas tirou os sapados e se deitou na cama.
- O que você quer que eu faça? – Perguntou a garota de programa.
- Carinho... Apenas carinho...
Ela se colocou ao lado do rapaz que encostou a cabeça no colo de seus seios. A moça acariciava seu rosto e cabelos silenciosamente. O rapaz até adormeceu por alguns momentos.
De repente, Eliseu acordou, deu um salto da cama, pegou o dinheiro em sua carteira, jogou em cima da moça, começou a gritar:
- Sai daqui, sai daqui, sai daqui...
A moça pegou o dinheiro, suas roupas e saiu correndo do quarto.
No dia seguinte, Herbert passou pelo atacadão, comprou várias coisas e foi para seu bar perto das nove da manhã. Seu cozinheiro começou a preparar o almoço, enquanto a atendente arrumava as mesas e limpava tudo. Ele colocou uma placa de “Precisa-se de funcionária” e foi se sentar em uma cadeira. Cansado como sempre, ficou olhando a rua.
Uns vinte minutos depois, uma mulher entrou e foi até ele, pedindo para falar com o proprietário. Ele se identificou como sendo o próprio.
- Eu vim aqui por causa daquela placa lá fora.
- Você tem experiência em servir almoço e janta?
- Sim moço, nesta vida já fiz de tudo. Moro em uma pensão para moças aqui perto no bairro de Santa Cecília. E lá eu ajudo voluntariamente a servir as refeições.
Ela sentou-se e conversaram por alguns minutos.
- Se o senhor me der uma chance, posso fazer um teste hoje mesmo sem compromisso.
- Senti muita vontade em você – disse ele estendendo-lhe a mão: - Seja bem-vinda. Muito prazer, meu nome é Herbert.
- O prazer é todo meu – pegando em sua mão: - O senhor não vai se arrepender. Meu nome é Marli.
Durante o expediente, ela arrumou tudo com tanto capricho e atendeu aos fregueses com tamanho carinho, que ao fim do dia, ouviu do proprietário:
- Parabéns, Marli. Está contratada.
- Agradeço muito seu Herbert. Estou com quase cinquenta anos. E conseguir emprego na minha idade não é fácil...
- Eu sei. Também estou nessa fase de idade. Muito cansado, cheio de problemas de saúde. Tenho que fazer tudo sozinho. Ninguém me ajuda – e fez várias lamentações.
Mais tarde, Marli entrou em seu quarto na pensão. Izabela, uma jovem de vinte oito anos, baixa e magra, companheira de quarto estava terminando de se arrumar.
- E aí Marli, como estou?
- Linda e bem arrumada como sempre. Vai sair com algum gato?
- Não, vou ao culto na igreja. Vamos?
- Hoje não, Iza. Comecei um trabalho e estou morta de cansada.
- Poxa, que legal, Marli! – Correu para abraçá-la: - Você tem sido uma pessoa muito importante para mim. Quando tive que deixar a casa de meus pais no nordeste e vir trabalhar como economista em São Paulo, você se tornou minha melhor amiga.
- Você também é especial para mim, Iza. É a filha que eu gostaria de ter tido.
Izabela saiu. Marli foi até a penteadeira colocar suas coisas. Reparou que sua amiga deixou sua agenda aberta, onde desenhou um sol sorrindo, coqueiros na areia e um barco ao mar com velas, distanciando-se da praia.
Os dias foram passando, Marli sempre trabalhando feliz e o dono do bar satisfeito com o seu serviço. Por conta do movimento, todos os dias, era por volta das quinze horas que ela tinha tempo para se sentar e almoçar. Herbert fazia o mesmo. E foram ficando amigos.
Em um desses almoços, ele lhe perguntou:
- Você tem família, Marli?
- Não seu Herbert. Moro há quase trinta anos na mesma pensão para moças. A vida não me permitiu ter uma história para chamar de minha.
Ele nem prestou atenção no que ela disse. Foi logo narrando:
- Sabe, quando eu era pequeno, tinha uma irmã. Meu pai era um comerciante muito enérgico, autoritário. Quando ele estava em casa, não podíamos nem falar para não incomodá-lo. Minha mãe era muito nervosa, me batia muito, gritava, chamava-me de burro e outros nomes. Às vezes, quando eu ia jogar bola na rua de terra e chegava todo sujo, ela me batia e me deixava umas duas semanas de castigo no quarto. Agora minha irmã era tratada como uma princesa, sempre bem vestida, mimada, tinha tudo que queria, a preferida da minha mãe.
- Pois é seu Herbert, quem nos vê, não imagina as dores que trazemos em nosso passado...
Nesse momento Eliseu chegou mais cedo. Foi apresentado à Marli como um grande amigo do bar. Ao vê-lo, ela sentiu algo diferente por dentro, mas não sabia dizer a si mesma o que era.
- Terminei uma corrida aqui perto, resolvi dar uma parada para comer algo – disse o rapaz.
- Sente-se aqui com o seu Herbert – disse ela se levantando, pegando seu prato: - Eu já terminei. Vou buscar o seu almoço.
Marli saiu. Eliseu comentou:
- Legal essa sua nova funcionária, muito simpática.
- Verdade, muito aplicada. Mas muito misteriosa. Diz não ter história.
No dia seguinte, após o trabalho, Marli chegou à pensão e encontrou Izabela arrumando-se. A moça lhe disse:
- Vou ao shopping pagar umas contas. Vamos dar uma volta?
- Taí, vou com você...
As duas passearam por duas horas. Izabela via vários vestidos, sapatos, bolsas. Experimentava, mas, insegura, não comprava nada. Andando pelos corredores, lembrou-se de algo.
- Marli, enquanto você toma o seu café na praça de alimentação, preciso conferir uma coisa. Já vou te encontrar.
Minutos depois, descontraída, ela tomava o café, quando um rapaz aproximou-se. Ao reconhecê-lo, abriu um sorriso.
- Eliseu, que bom encontrar você aqui.
- Eu gostei de lhe ver, Marli. Posso me sentar um pouco?
- Desculpe-me a minha indelicadeza. Por favor, sente-se.
Ao puxar a cadeira, o rapaz, sentando-se, perguntou-lhe:
- E aí, está gostando de trabalhar com o Herbert?
- Ele é muito gente boa. Cá entre nós, só lamenta, coitado...
- Verdade, ele é muito bacana, mas tem esse defeito. Se fazer de vítima é uma das piores coisas que uma pessoa pode fazer na vida. A autopiedade gera uma cegueira descomunal e o resultado disso é a pessoa praticamente se anular por completo. Sempre que nós não conseguimos enxergar todos os nossos lados, muitas vezes acabamos colocando nas outras pessoas, a culpa pelos nossos fracassos e perdas, pois dessa forma, nos sentimos menos culpados. Só que, ao agir assim, a pessoa não cresce, não amadurece, pois não aprende com os seus erros.
- Nossa Eliseu, você fala tão bem. Infelizmente tem muita gente como ele por aí.
- Sabe Marli. Essas pessoas sofrem daquilo que chamamos de Síndrome do Coitadinho. Na realidade, são verdadeiros sugadores da energia alheia. Em geral, falam sem parar, choram por qualquer coisa, fazem pedidos, tentam seduzir, manipular, sempre esperando que os outros sejam o remédio para seus problemas.
- É, eu sei – disse ela baixinho, lembrando-se de Celso.
- São pessoas que só focam no sofrimento e em nada mais. E querem carregar todos para este pântano de lamúrias, a qualquer preço. Com essas dificuldades emocionais, buscam inutilmente atenção, amor e aceitação das pessoas. Apesar de tudo, o Herbert tem um bom coração com quem está sendo útil a ele.
- Eliseu, você é muito inteligente. No que se formou?
- Comecei a cursar psicologia, mas larguei no quarto ano.
- Mais por quê, moço?
Izabela se aproxima da mesa. Marli, em um sorriso, apresentou-a ao amigo e freguês do bar onde trabalhava. Por alguns instantes trocaram olhares fixamente, quebrados pelos cumprimentos.
- Marli, desculpe-me interromper a conversa, mas temos que ir embora.
- Eu estou de carro, posso levar vocês – ofereceu-se o rapaz: - Não me custa nada.
No quarto da pensão, Izabela colocou suas coisas em cima da cama. Alguns papéis caíram ao chão. Marli abaixou-se para pegá-los, não deixando de reparar.
- Olha, folhetos de uma agência. Vai viajar, amiga?
- Não Marli, estava só pesquisando – respondeu, pegando os papéis das mãos dela.
- E por que não, Iza? Você é jovem. Tem mais é que aproveitar a vida.
- Eu tenho medo de viajar sozinha, passar mal, não ter ninguém para me socorrer.
- Deixa de ser boba, menina...
Após deixá-las na pensão, Eliseu partiu para a noite paulistana. Escolheu uma casa de prostituição. Entrou, combinou o preço com uma mulher mais velha e foram para um dos quartos lá nos fundos.
- O que você gosta, meu anjinho? – Perguntou a profissional despindo-se.
- Carinho... Só carinho...