4 - UMA ALEGRE BRISA DO PASSADO

  No bar, Marli pegava um troco no caixa, quando Herbert ligou para Eliseu:

- Cara, hoje o Esteves quer dar um pulo aqui. Por favor, você pode apanhá-lo no escritório?

O almoço ocorreu normalmente. Na hora deles fazerem as refeições, o chefe comentou com Marli:

- Estou tão cansado. Acho que minha saúde não está boa. Sinto um pouco de tristeza, solidão.

- O senhor deveria procurar um médico – sugeriu ela, já conhecendo as manias de Herbert.

Ele continuou fazendo o discurso de coitadinho, buscando o carinho que não teve na infância. Parecia implorar migalhas afetivas.

No final de tarde, Marli se arrumou para ir embora. Foi até o balcão pegar sua bolsa, quando Eliseu parou o carro em frente ao bar. Herbert correu ao encontro. Tiraram um andador do porta-malas e o montaram na calçada. Desembarcaram um homem de meia-idade, rosto de cansado, rugas, cabelos grisalhos, bem vestido. Ele pegou o andador e foi caminhando com muita dificuldade e devagar ladeado pelos dois. Ao chegar à mesa, eles o ajudaram a se sentar.

Marli foi embora para pensão, descansar para o dia seguinte.

Herbert e Eliseu se sentaram com o homem. Um garçom veio logo servi-los.

- E aí, Esteves, como vai a vida? – Perguntou o dono do bar.

- O mesmo de sempre, muito trabalho lá no escritório, mas estou feliz. E você Herbert, como está?

- Cansado, eu trabalho muito, nunca sou reconhecido. Aqui em volta, todos têm inveja do sucesso do meu bar.

O estabelecimento dele era o mais simples daquela rua comercial. Herbert não mantinha amizade com nenhum dos comerciantes. Em algumas das reuniões da associação comerciária, ele sempre entrava mudo e saia calado. Mas se sentia o comerciante mais inteligente da região. Para proteger seu ego fragilizado emocionalmente, ele nunca estava errado, sentia-se perseguido, invejado, injustiçado. Tinhas suas justificativas tranquilizante, onde a culpa de tudo sempre era dos outros e nunca dele.

- Você não tem jeito mesmo – disse Esteves rindo.

Após o papo, os três foram embora juntos. Deixaram Esteves em seu apartamento. Herbert ficou naquele bingo clandestino. E Eliseu caiu na noite paulistana em busca de “carinho... só carinho”.

Izabela chegou à pensão, encontrando Marli sentada no sofá pensativa.

- O que foi, amiga?

- Nada de mais, Iza. Hoje saindo do bar, chegou um homem que me deu uma forte sensação que eu já o conheço.

- Pode ser paixão à primeira vista. Há uns coraçãozinhos voando de sua cabeça...

- Não brinca, menina – falou Marli séria, fazendo Izabela dá risada.

Na semana seguinte, para ajudar uma colega que tinha uma consulta médica, Marli fez uma troca de horário. No final da tarde, Eliseu chegou ao bar com o Esteves. Ajudaram-lhe desembarcar e ir até sua mesa de sempre. Herbert mesmo pegou as bebidas e sentaram-se os três para o bate-papo. Às vezes, Marli percebia que ele a observada.

Minutos depois, Eliseu foi chamado para fazer uma corrida pelo aplicativo. Chegou um vendedor de bebidas ao bar. Herbert se levantou e foi atendê-lo, fazer os pedidos.

Esteves fez um sinal para Marli, pedindo mais uma cerveja. Ela levou até a mesa, foi servindo gentilmente, quando ele comentou:

- Você continua linda como sempre...

- Desculpe-me senhor, mas a gente já se conhece? – Perguntou ela sem jeito.

Esteves respondeu em um sorriso:

- Meu primeiro nome é Luiz.

Marli colocou a mão na boca como se não estivesse acreditando. Sorriu e não se conteve em abraçar o velho amigo.

- Sente-se aí, vamos conversar.

- Não posso Luiz, este é meu local de trabalho.

- Senta Marli, aqui eu mando e o Herbert não apita nada.

Ela riu e se sentou para uma rápida conversa.

- Viu só, o tempo se encarregou de destruir meu corpo – comentou ele em um tom de brincadeira.

- Não fale assim, Luiz. Você até que está bem.

- Sim, minha amiga. À medida do possível. Tenho uma doença degenerativa que ao longo do tempo vai acabando comigo. Só que não reclamo, vou me adaptando a ela e vivendo um dia por vez. Aliás, nem posso reclamar, vivi boas coisas até aqui.

- E o que foi da sua vida, amigo?

- Logo depois que nos formamos no colegial, fiz cursinho e passei em economia em uma universidade pública. Ao terminar, consegui uma bolsa de mestrado nos Estados Unidos e fui embora. Fiquei sete anos lá. Casei-me com uma americana, fui feliz por alguns anos, mas o casamento terminou. Não tive filhos. Voltei ao Brasil, montei um escritório de consultoria financeira que foi crescendo. Hoje tenho quarenta funcionários e uma vida confortável, mesmo com essa minha doença que começou há uns três anos.

Herbert se aproximou da mesa, anunciando que iria fechar o bar.

- Marli, minha empregada deixou minha janta pronta. Que tal irmos jantar em meu apartamento e continuar esse papo de reencontro? Não vai negar o pedido de um velho amigo, vai?

Ela aceitou em um sorriso. Partiram no carro Eliseu, Herbert, Esteves e Marli. Logo chegaram de fronte a um prédio na avenida São João. Os amigos o ajudaram a descer. Eliseu se ofereceu para o acompanhar até seu apartamento.

- Não precisa, cara. Hoje estou bem acompanhado pela Marli.

Eliseu e Herbert partiram para os locais de sempre. Marli acompanhou o amigo em seu andador pela entrada luxuosa do saguão e elevador. Chegaram ao último andar. Ele morava sozinho na cobertura. Um apartamento antigo, grande, muito bem decorado. Sentaram-se no sofá.

- Está gostando de trabalhar com o Herbert?

- Sim, ele é muito legal. O ambiente é muito tranquilo. Mas seu Herbert tem aquela mania de...

- De reclamar de tudo – interrompeu Luiz Esteves rindo: - Eu sou amigo dele desde quando voltei ao Brasil. Realmente é um cara legal. No fundo, o Herbert é vítima de seu passado. Existem alguns pais que culpam, desprezam, humilham e que não respeitam os sentimentos de seus filhos. As crianças que são tratadas assim sentem que não são dignas de serem queridas, amadas e passam a omitir seus sentimentos porque não sentem como sendo importantes.

- Muito triste, Luiz. 

- Pois é. O rejeitado passa, então, a rejeitar-se, e, na idade adulta, muitas vezes, mesmo frente ao sucesso e obtendo bons resultados, essa pessoa pode apresentar grande fragilidade frente a qualquer crítica que exponha seus medos internos de insucesso. Uma hora dessas ele deve está em algum bingo clandestino. Gasta em jogos todo o lucro que ganha. Sonha em ser muito rico para “comprar” o carinho e atenção das pessoas...

- E o Eliseu, também é seu amigo?

- É, apesar de ser muito mais jovem. Mas o Eliseu é outro caso, um dia lhe conto. Agora estou com fome. Vamos até minha cozinha esquentar a janta?

Caminharam até lá. Marli tinha momentos em que ficava em dúvida se deveria ou não auxiliar o amigo em suas dificuldades físicas. Na cozinha, ela ficou à vontade para cuidar de tudo, servir à mesa. Jantaram descontraidamente, rindo, lembrando de coisas e pessoas do tempo de escola e comunidade.

- Agora chegou a sua vez de contar sua história, Marli.

- Eu não tenho nada para contar, Luiz – disse ela, baixando a cabeça.

- A mulher sem história, como diz Herbert. Você se casou com àquele seu paquera da comunidade?

- Casei, era o Giorje. Tínhamos uma vida muito humilde, mas éramos felizes. Chegamos a ter um filho. Ele era muito trabalhador, foi morto por engano em uma batida policial. Sua irmã, uma mulher bem relacionada, tirou-me a guarda de meu bebê de três meses. Foi a maior dor da minha vida. Uma imensa dor que tive que bloquear para conseguir vivendo. Não tem um só dia que eu não pense em meu filho amado, mesmo ao longe. Hoje ele está com trinta e um anos em algum lugar deste mundo.

Marli começou a chorar, derramando compulsoriamente as lágrimas contidas, sufocadas nesses vários anos.

- Se você quiser, Marli, pode parar de contar. Desculpe-me por ter perguntado.

- Não Luiz, agora que comecei, preciso terminar - disse ela enxugando as lágrimas: - Em seguida, envolvi-me com um cara que me ofereceu abrigo e prometeu-me ajudar a recuperar a guarda de meu filho por meio de um advogado conhecido dele. Eu estava destruída por dentro, fragilizada, sem ninguém para me estender a mão. Ele era o único fio de esperança. Aceitei morar com ele. Tudo se tornou um relacionamento abusivo. Ele me afastou de todos meus amigos, conhecidos, tirou-me do trabalho. Perdi o contato com meus pais e irmãos no interior para sempre. Tornei-me uma submissa pelo simples fato de acreditar que àquele advogado traria meu filho de volta.

Ela parou por alguns instantes para chorar. Esteves lhe serviu um copo d´água. Marli respirou fundo e concluiu:

- Até que descobri que o cara era aliado da irmã de Giorje, fora tudo um golpe para me possuir só para ele. Até o advogado era falso e meu filho fora vendido para o estrangeiro com documentos falsos. Entrei no primeiro ônibus coletivo que passou e nunca mais olhei para trás. E o que mais me dói é saber que nunca mais vou saber o que foi do meu bebê.

- E você não tentou pelo menos reencontrar seus pais e parentes?

- Que jeito meu amigo? Tive que ficar alguns dias na rua, sem ao menos ter o que comer, destruída por dentro, sem um norte na vida. Até que fui reconhecida por uma ex-colega de trabalho. Ela me levou para casa, abrigou-me. O primeiro serviço que consegui, fui morar em uma pensão para moças, onde estou até hoje. Todos esses anos, mudando sempre de serviços, a vida não me permitiu construir uma carreira. E o que ganhei, foi só para me manter sobrevivendo.

Abraçaram-se como velhos amigos e choraram juntos. 

- Bem, já é tarde, preciso ir para pensão.

- Tem um taxista que trabalha para mim. Vou pedir para lhe levar em casa. Mas antes venha ver uma coisa.

Luiz Esteves a levou até seu escritório. Na parede emoldurado estava a folha de caderno onde na época da escola Marli desenhou à caneta e com traços simples uma praia com coqueiro e grama, um sol com carinha sorrindo entre nuvens, o mar, peixinhos e um barco com uma vela pequena.

- Olha, você guardou o desenho que lhe dei. Que lindo – admirou ela surpresa.

- Eu queria sempre ter uma recordação sua, Marli.

- Bons tempos àqueles quando eu ainda podia sonhar, Luiz...

- Sabe, não sou fã de frases motivacionais. Porém Confúcio dizia que não podemos mudar o vento, mas podemos ajustar as velas para chegar onde quiser. Você ainda tem muita vida pela frente, Marli. E pode ajustar suas velas e conquistar as terras longínquas que a vida insiste em esconder. A vida sempre sutilmente nos chama para viver! 

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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