5 - CONVOCAÇÕES DA NOVELA DA VIDA

Marli chegou ao seu quarto na pensão perto da meia-noite. Izabela levantou-se, estava muito preocupada com a demora da amiga. Foi abraçá-la.

- Calma, Iza. Eu encontrei um amigo querido da época de escola. Estava papeando no apartamento dele.

- Desculpa, Marli. Não sei porquê, mas por alguns instantes tive medo de perder você.

Esteves começou a frequentar o bar mais vezes. Nessas ocasiões, Marli ficava depois do expediente para bater papos com ele, Herbert e Eliseu.

Certa noite, Izabela estava saindo do culto, já na calçada, um carro parou ao seu lado e buzinou. Ela abaixou-se para olhar pela janela. O motorista apresentou-se:

- Oi, sou o Eliseu, amigo da Marli. Naquele dia, dei carona para vocês no shopping. Entra, eu deixo você na pensão.

- Obrigada, hoje estou mesmo com um pouco de pressa, ainda não jantei – disse a moça entrando no carro, dando um sorriso.

- Eu também não. Que tal a gente tomar um lanche antes? Hoje é por minha conta.

Na lanchonete, eles conversavam descontraidamente. Ela contou sua origem nordestina e que trabalhava como economista em um escritório de consultoria financeira. E o indagou:

- E você, o que tem para contar, Eliseu? 

- Não muita coisa, sou um mero motorista de aplicativo. Minha história não vale a pena ser contada.

Ele, reparando a bolsa dela e a bíblia em cima da mesa, comentou:

- Você é evangélica. Bacana.

- Graças a Deus. E você, Eliseu, tem alguma fé?

- Vou ser sincero. Eu nunca entrei em nenhuma igreja.

- Vem nos visitar algum dia. Pelo menos para você conhecer. Já tem até nome bíblico.

- É, quem sabe...

Em frente a pensão, ela agradeceu a carona e o lanche, dizendo:

- Amei nosso papo. Até mais.

Izabela passou a mão na cabeça dele. Eliseu fechou os olhos, sentindo o gesto de ternura. Ela desceu.

Entrando no quarto nas pontas dos pés e no escuro para não acordar a amiga, ouviu:

- Hoje foi você quem chegou tarde – disse Marli brincando.

Ao deixar a pensão, Eliseu partiu, indo pagar pelo carinho de alguma trabalhadora da noite. Ao acordar na manhã seguinte, lembrou-se de quando Izabela passou a mão em seu cabelo. Levantou-se, vestiu-se, preparou-se e tomou café e foi trabalhar, rodar por mais um dia.

Na hora do almoço, Izabela desceu sozinha do escritório. Caminhando pela calçada na rua comercial, ela parou em frente à vitrine de uma loja de sapatos femininos. Em um impulso entrou, sendo recebida pelo sorriso da vendedora. Escolheu alguns modelos de sandálias e pediu seu número para experimentar. Logo a vendedora voltou do depósito com poucas caixas, pois o número 33 feminino não era muito fácil, mas trouxe algumas opções.  A moça se animou em experimentá-las. Algumas ela separou, outras descartou. Até que se apaixonou por um modelo. Ficou um tempo ali apreciando a linda sandália em seus pés.

- Posso fazer a notinha para a senhora pagar no caixa? – Indagou a vendedora.

Um suor começou em Izabela. Seu inconsciente lhe disse: “Eu não sou merecedora!”.  Devolveu outra pergunta à vendedora:

- Vocês ficam abertos até que horas?

- Até as dezenove, senhora.

- Eu tenho que ir ao supermercado e não quero ir com sacola. Qualquer coisa eu passo aqui na volta. Muito obrigada pela sua gentileza de me atender. Tenha uma boa tarde.

Eliseu que sabia onde a moça trabalhava, sentiu vontade de ficar um pouco parado em frente ao prédio. Vendo Izabela andando apressada na calçada, desceu e foi ao seu encontro. 

- O que você está fazendo por aqui? – Perguntou ela surpresa.

- Eu estava passando e ao vê-la acelerada, desci para ajudá-la. O que houve, Iza? Você parece está com o coração acerelado. 

- Nada não, Eliseu. Bobeira da minha cabeça – respondeu ela, enxugando as lágrimas.

- Pelo menos, vamos tomar uma água ali no bar.

- Eu agradeço amigo. Preciso voltar ao trabalho.  Valeu mesmo.

Izabela deu um afetuoso abraço em Eliseu. 

No domingo, Eliseu convidou Izabela para dar um passeio no parque. Passaram algumas horas descontraídas. Conversaram muito, riram como se fossem velhos amigos. Ela lhe contou mais sobre sua vida no nordeste. E comendo pipoca, questionou-o:

- Eliseu, por que você nunca fala da sua história, do seu passado?

- Já disse, não tenho nada para contar...

- Desculpa por ter perguntado.

Ficaram por algum tempo calados. Olharam-se frente a frente. Algo mais forte tocou Izabela, tentando aproximar seus lábios dos dele.

- Não, eu não posso – disse ele em um sobressalto, empurrando-a: - Me desculpe...

Ele saiu correndo e foi embora. Izabela ficou olhando sem entender o que acontecera.

Dias depois, no bar, Marli se aproximou da mesa onde Eliseu acabara de almoçar. Ela reparou que o moço desenhava a caneta no guardanapo, uma praia com coqueiro, um sol com carinha sorrindo e um barquinho com vela ao mar.

- Bonito desenho, Eliseu.

- É, eu o faço desde quando eu era pequeno.

- Bem, quero lhe perguntar se você tem notícias do Esteves? Ele sumiu a mais de uma semana.

- Não tenho. Bem reparado. Vou passar lá no prédio dele e procurar saber.

À noite, Marli e Izabela conversavam no quarto.

- E como vão os encontros entre você e o Eliseu?

- Legal. A gente se dá bem. Conversamos muito. Gostamos de estar um com o outro. Mas ele tem umas manias esquisitas. Não quer falar do seu passado. Não aceita contato físico, é sempre arredio nessa parte.

- Tenha paciência amiga. Cada pessoa tem o seu tempo.

A conversa foi interrompida quando Marli foi chamada à recepção, onde Eliseu a esperava.

- Você não morre mais... – Disse ela, descendo as escadas.

- Por que, Marli? – Quis saber ele sorrindo.

- Bem, deixa pra lá.

- Marli, o Esteves está internado. É em um quarto particular e sei onde fica o hospital.

Juntos foram até lá. Esteves ficou muito surpreso e feliz ao vê-los.

- Amigos, que bom recebê-los aqui.

-  O que houve, Luiz?

- Nada de mais, Marli. Apenas uma internação de rotina.

Após uma conversa descontraída, ela tomou uma decisão.

- Eliseu, se você quiser, pode ir. Vou passar esta noite aqui com ele.

Esteves não comentou, mas sentiu-se acolhido naquele momento onde não tinha ninguém para apoiá-lo. Conversaram por mais um tempo e ela adormeceu na poltrona ao lado da cama.

Ao acordar pela manhã, Esteves estava a olhando serenamente. Ela lhe deu um sorriso de Bom Dia! Marli o ajudou a tomar o café e se alimentou. Lembrou-se de algo.

- Preciso ligar para o bar e avisar o seu Herbert que não vou hoje. Vou cuidar do melhor freguês dele.

Esteves riu e fez uma revelação:

- Marli, ontem eu não quis falar a verdade. Estou internado porque meu quadro acelerou mais um pouco. Não vou mais usar o andador. Minha realidade agora será na cadeira de rodas. Embora eu tenha protelado, chegou a hora de ter uma cuidadora integral. E não vejo ninguém melhor que você para isso. Por favor, vem trabalhar comigo. Morar em meu apartamento.

- Eu, Luiz!? – Surpreendeu-se com o convite: - Eu nunca fui uma cuidadora.

- A gente aprende juntos. Além do mais, tenho mais alguns dias de internação. Pense com calma.

Uma anti sala de um consultório de psicologia, Eliseu esperava sentado. Logo apareceu uma moça morena, cabelos cumpridos, magra, apresentando-se em um sorriso:

  - Olá Eliseu, sou a Rita, psicóloga. Muito bom você ter me procurado. Vamos até lá dentro bater um papo.

Na sala de atendimento, ele estava sem jeito. 

- Na verdade doutora, eu nem sei por onde começar. Há coisas dentro de mim que nunca contei para ninguém. Nem sei como verbalizá-las. Só que eu sei que preciso de ajuda. Por isto tomei essa iniciativa de procurá-la sem ninguém saber.

- Não tenha pressa, Eliseu. O importante é que você deu o primeiro passo, procurou ajuda. O que lhe aflige, machuca-lhe, enfim, com o tempo surgirá em nossas sessões. Agora, que tal você me contar quem você é e o que faz hoje?

Ele ficou mais confortável com essa sugestão. Conversaram por uns trinta minutos sobre os dias atuais. Até que a psicóloga observou:

- Bem, Eliseu, talvez você possa começar a mudar coisas importantes na sua atualidade. Faça o que seu coração está pedindo. Fará-lhe muito bem. Agora, infelizmente seu tempo acabou. Você volta na próxima semana?

- Talvez – respondeu ele pensativo.

À tarde, Marli foi procurar Herbert no bar. Contou-lhe o estado de Esteves e o pedido que ele lhe fez. Pediu a opinião do patrão e amigo. O dono do bar deu-lhe um conselho:

- Marli, você é a melhor funcionária que já tive e uma amiga querida. Só que agora, o Esteves precisa do seu apoio mais do que nunca. Vá, siga seu coração. Eu mesmo vou ficar muito aliviado em saber que nosso amigo está sendo cuidado por você.

À noite, Izabela estava sentada dentro da igreja. Ainda era cedo e as pessoas chegando. De repente, alguém sentou-se ao seu lado. Ela olhou disfarçadamente e surpreendeu-se:

- Eliseu, você por aqui?

- Lembra-se? Você me convidou um dia para conhecer a igreja. E depois, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter saído correndo naquele dia no parque.

- Esquece isso, já passou...

O culto começou. E na pregação, o pastor dizia:

- Muitas vezes nos sentimos em completo abandono, mesmo tendo diversas pessoas ao seu lado. Vem um vazio dentro do seu coração que precisa ser preenchido. Pessoas muitas vezes, recorrem as festas, aos passeios, o dinheiro, aos relacionamentos momentâneos, mas descobre que é tudo inútil. A sensação de abandono teima em tomar conta do seu coração, levando-o a um profundo sentimento de tristeza. Muitas vezes as causas estão lá no seu passado e ninguém sabe. Você mesmo não tem nem condições de verbalizá-las. Saiba que esse vazio somente pode ser preenchido por Jesus, somente Ele consegue suprir de forma completa as necessidades do ser humano. Isaías: 65.17-25 diz: Pois vejam! Criarei novos céus e nova terra e as coisas passadas não serão lembradas. Jamais virão à mente! Alegrem-se, porém, e regozijem-se para sempre no que vou criar, porque vou criar Jerusalém para regozijo e seu povo para alegria.

Eliseu chorou muito silenciosamente.

Antes de terminar, veio um recado:

- Meus irmãos, logo teremos mais um mês de missão no nordeste brasileiro para obras de piedade e evangelização. Quem quiser participar, basta deixar o nome na secretaria da igreja.

- Olha que legal, vou me inscrever – disse ela empolgada.

Eliseu levou Izabela até a pensão. Ela se despediu dando-lhe de surpresa um beijo no rosto, revelando-lhe:

- Até mais, “Deus é o meu auxílio”. Isso é o que significa em hebraico seu nome, Eliseu.

O rapaz mais uma vez partiu para a noite paulistana. Chegou em uma casa de programas. Foi para o quarto com uma garota.

- O que o gato vai querer hoje? – Perguntou ela tirando a roupa.

Eliseu lembrou-se do culto e do beijo de Izabela. Respondeu:

- Hoje nada. Toma o seu dinheiro. Desculpe-me.

Saiu da casa e foi embora.

Na manhã seguinte, enquanto se arrumavam, Marli contou para Izabela que iria se mudar para o apartamento de Esteves.

- Não faz isso comigo, Marli, como vou ficar sem você? – Indagou chorando: - Você é a única pessoa que tenho nesta cidade. 

- Calma Iza. Eu não vou lhe abandonar. Só vou cumprir uma missão. Estarei aqui perto. Podemos nos ver quase todos os dias.

- Desculpe-me, mas de repente senti uma sensação de abandono. Bobeira da minha cabeça.

Marli foi à penteadeira, pegou um livro, abriu em uma página:

- Sabe Iza, esses dias li esse trecho interessante: “Fazendo uma metáfora com a televisão, nossa vida é formada por várias novelas e nós somos escalados para diversos elencos. Quando crianças, nossa turma é uma. Na escola conhecemos novos amigos que vão entrando e saindo do nosso círculo ao longo das séries, da adolescência, da vida universitária. Somos escalados para as ilusões e desilusões amorosas. Companheirismo os mais variados. Alguns fazem papéis de mocinhos, mocinhas. Outros preferem ser os vilões. Algumas pessoas voltam em outros momentos de nossas vidas. Outras se vão e nunca mais sabemos delas. Há as que deixam para sempre esta existência, tornando-se saudades. Os elencos mudam quando mudamos de casa, de bairro, de cidade, de estado, de país. Na vida profissional, cada trabalho será uma formação diferente de elenco. A vida é assim, uma constante escalação para vivermos papéis e situações as mais variadas com risos, choros, perdas e ganhos. Às vezes planejamos desembarcar de uma novela. Outras vezes, somos surpreendentemente “expulsos“ dos elencos. Alguns lidam bem com essas viradas inevitáveis nas esquinas da vida. Outros, mais apegados e tementes em sair da zona de conforto, temendo o novo, sofrerão por não entender que este é um mecanismo na arte de viver e aprender naturalmente com o amadurecimento”.

- Verdade, Marli. Agora você está sendo escalada para um novo elenco. Deus lhe abençoe, minha amiga!

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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