7 - MORIELLE, POR QUE NÃO?

  Sozinho em seu apartamento, quase madrugada de sábado para domingo. Almir olha as redes sociais, vendo fotos de vários casais felizes. Pelo menos nas imagens postadas. Vê perfis de alguns conhecidos. Até que um uma foto de Morielle lhe chama a atenção. Ao abrir, a página não tem o seu nome oficial e sim “Mori De Bem Com A Vida”. São muitas fotos dela bem-vestida, outras com roupas de ginástica, algumas de lingerie em poses sexys. Ele passa um bom tempo ali apreciando as fotos daquela mulher com pouco mais de cinquenta anos e ainda com um belo corpo.

* * *

Na manhã seguinte, Morielle e ele se encontram na Avenida Paulista que, aos domingos é fechada para carros. Um dia ensolarado, com várias tribos de pessoas caminhando, crianças brincando, ciclistas, skatitas, artistas de rua fazendo seus shows, grupos ou cantores solos apresentando diferentes estilos musicais.

Eles começam a caminhar quando, por surpresa, Morielle pega em sua mão. E de mãos dadas, vão olhando e comentando a tudo até chegarem à Casa das Rosas, um casarão no estilo clássico francês, localizado no início da avenida, dedicado a diversas manifestações culturais, com enfoque em literatura e poesia. É um dos edifícios remanescentes da época característica da ocupação inicial de uma das principais vias da cidade. 

Eles passeiam pelas alamedas do jardim entre os muitos canteiros de rosas. Vão conhecer o casarão por dentro e depois almoçar no restaurante em um dos anexos da construção, conversando descontraidamente.

De fato, nos últimos dois meses, Morielle aproxima-se muito dele. É uma mulher muito misteriosa. Evita falar de sua vida. Não dá seu endereço. E sempre surge do nada e some por alguns dias. Só que a sua companhia lhe faz bem. Almir sente que o vazio deixado por sua mãe e partida de sua família começa a ser preenchida por sua ex-amiga do colegial.

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No de tarde de segunda-feira, Adriana vai almoçar com um dos diretores da empresa. A certa altura, o executivo revela-lhe:

- Hoje conversei com nossa matriz nos Estados Unidos. Você está sendo cotada para assumir a posição de country manager e comandar nossas operações aqui no Brasil.

Ela acha não ter escutado direito, perguntando a si mesma: “Porque eles pensaram em mim?”. Enquanto advogada, um ano antes, já havia sido indicada para posição de chefe do departamento jurídico da empresa na América Latina.

Dias depois, o convite, é aceito imediatamente, diante de três condições feitas por Adriana à Diretoria:

- Quero entrar mais tarde no trabalho para poder frequentar a academia pelas manhãs e levar meus filhos todos os dias à escola. Eu amo ser mãe, gosto de estar com minha família. Diria que este é o meu segredo de sucesso. Temos aqui uma equipe competente e na qual posso confiar, permitindo que minha agenda seja cumprida à risca.

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Como é de rotina (e há anos!), logo depois do expediente, Almir vai ao Bar 50!. Senta-se na mesa de sempre, pedindo a mesma bebida. Olha para a porta, com o enorme desejo que Morielle entre por ela. A mulher que nos últimos dias preenche seus pensamentos por inteiro. Faz despertar desejos adormecidos por muitos anos dentro de si. Vontade de abraçá-la, beijá-la, protegê-la. Ele já havia até esquecido como é gostar de alguém.

Seu momento de devaneio é interrompido quando Elias vem lhe trazer mais uma bebida, revelando-lhe:

- Aproveita Almir, que esta é minha última semana por aqui. Vendi o bar, já posso me aposentar.

- Maravilha meu amigo, mas quem comprou?

- Não posso falar, a pessoa pediu segredo. Pelo menos por enquanto...

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Almir está no escritório, quando Cátia telefona a ele, convidando-o para uma palestra que ela fará logo mais à noite em sua clínica. O amigo aceita o convite e, ao chegar lá, encontra com Morielle. Seu coração se alegra, pois é cada vez melhor ficar ao seu lado. E se sentam de mãos dadas.

Várias pessoas estão lá, sentadas em cadeiras ou em pequenas esteiras de yoga pelo chão. Um ambiente de clima exotérico. E a terapeuta holística começa sua fala:

- Se eu falar para certos tipos de pessoas, deixe de dar desculpas, saia da posição de vítima, sua primeira reação será em retrucar, dizendo-me: “Mas eu não me coloco na posição de vítima!” Será mesmo? Vamos ver alguns exemplos. Essas pessoas olham o próximo e pensam: se eu tivesse estudado na escola que ele estudou, teria conseguido passar para aquela faculdade que ele passou. Se eu tivesse dinheiro, teria feito intercâmbio e conseguiria aquele emprego com inglês fluente. Se eu conhecesse o fulano teria conseguido aquele emprego. Para você é fácil falar, você é rico! Ou coisas menos clichês e mais cotidianas talvez: Se eu tivesse um carro, chegaria em casa mais cedo e aí eu teria tempo para fazer aquele curso de inglês. Se eu não trabalhasse tanto, iria à academia. Se eu tivesse a sorte que você tem de morar perto do trabalho, eu também correria antes de ir trabalhar. Eu não tenho dinheiro, eu não tenho tempo, eu não posso isso... Já deu para entender, né?

Todos na sala, em silêncio, balançam somente a cabeça, confirmando em um sim coletivo. E Cátia continua:

- Todos nós em algum momento de nossas vidas nos colocamos na posição de vítima. E várias pessoas não param com esse eterno muro das lamentações. Não encaram a realidade dos fatos e por isto não conseguem prosseguir com suas vidas. Elas precisam ser francas consigo, parar com as desculpas que dão a si mesmas e seguirem em frente! Sem essa de eu sou desafortunado! Nós nascemos sem saber andar, sem saber falar e tivemos que se esforçar para aprender essas coisas. Com o conseguir dinheiro, sucesso, amor e felicidade não é diferente. Todos que hoje tem algo foi porque lutaram e ainda lutam muito por isso! Mesmo que ninguém veja ou queira ver! Então jogue essas desculpas na lixeira e mãos à obra!

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Ao saírem da clínica, Morielle conta:

- Almir, tenho duas entradas para um baile essa noite. Topa?

Eles vão ao Clube Piratininga, um ambiente acolhedor e familiar, próximo ao bairro de Higienópolis. Tradicionalmente conhecido pelos grandiosos bailes e festas que realiza em seus salões, nas noites de quintas-feiras, sábados e domingos, também reúne grupos para as tardes de jogos recreativos que promove.

Sentam-se em uma mesa à beira do salão. Como sempre, estão à vontade, curtindo a companhia um do outro. A música convidativa, ele a tira para dançar.

Passadas algumas canções, começa a tocar “Música Lenta“, um antigo sucesso de Lenon e Lilian. Nos versos “Porque eu quero dançar com você uma música lenta / Abraçar o seu corpo e sentir só a sua presença”, Almir, fascinado por tê-la envolvida em seus braços, tenta beijá-la.

- Melhor não – diz Morielle, virando o rosto.

- Mas por quê? Pensei que...

- Acho melhor voltarmos para a mesa.

Começam a caminhar de mãos dadas. Um homem de cara fechada para diante deles, dando um soco em Almir que cai ao chão. Segura Morielle e a arrasta para fora do salão.

Caído, passando a mão pelo rosto que dói, ele fica sem saber o que realmente aconteceu.

* * *

Dois dias depois, no começo da noite, a campainha do apartamento de Almir toca e ele vai atender. Ao abrir, vê Morielle de pé com malas nas mãos que diz timidamente:

- Acho que lhe devo uma explicação. Posso entrar?

- Você está sozinha?

Ela dá um sorriso sem graça, entrando. Já sentados, ela revela-lhe:

- Na verdade Almir, eu sou casada.

  - Por que então você se aproximou de mim? Quem é àquela mulher toda empoderada do perfil “Mori De Bem Com A Vida”?

- Foi mais por amizade, pelo carinho e respeito que você me dá e eu nunca conheci. Aquilo na internet foi uma realidade paralela que criei para suportar minha realidade verdadeira. Sabe, desde pequena eu fui abusada em todos os sentidos, não tive a proteção que uma criança precisa de sua família. Na escola era motivo de piada, chacotas por ser gorda. Até no ginásio, colegial, faculdade nenhum rapaz olhava para mim. Ou se olhava era para fazer gozação. Casei-me com o primeiro cara que me quis. Ele me desvalorizava demais, sofria abusos tanto físicos quantos psicológicos. Até me tirou da minha profissão. Com o tempo, consegui me separar dele. Mas quando temos um relacionamento, nivelamos o parceiro como o modelo ideal para nós e meu próximo marido foi igual ao primeiro, controlador, que sabia tudo, com opinião sobre tudo e não parava para escutar, negligenciava meus sentimentos. Eu e meus filhos fomos maltratados por ele por quase dez anos. Minhas emoções, sonhos e desejos foram reprimidos ao decorrer da vida quando passei a viver a vida do outro. Era um sentimento de incapacidade de decisão que reprimia todos meus planos e por receio de não ser aceita por eles. Por essa dependência emocional, eu tinha excesso de medo de ser trocada, abandonada, que eles encontrassem uma pessoa melhor. Ou mesmo tempo que a falta de amor deles me criava a sensação de vazio e impotência. Eu entrava em um estado de negação, esperando que algum dia tudo ficasse bem e ignorava os problemas que surgiam durante o relacionamento para não causar desconforto em falar sobre eles com meu parceiro. E ao deixá-lo, acabei me envolvendo com esse atual que é a mesma coisa. Só que esse me deixou fazer tratamento para obesidade e por isto faço àquelas fotos do perfil.

- E seus filhos?

- Graças a Deus, hoje eles estão casados, bem na vida. Cada um tem sua família, segue o seu caminho. 

- Então por que você se submetia a isso e vivia com esses caras?

- É que eu desenvolvi uma dependência emocional. A necessidade de outra pessoa para viver, de não saber como agir sozinha, não se sentir feliz, nem motivada. Um sério transtorno que prejudica a saúde e as relações sociais.

- Nunca havia ouvido falar de dependência emocional, Morielle.

- Na maioria dos casos provém de uma fragilidade adquirida ainda na infância, no crescimento em uma família com muitos conflitos e pouco suporte para a criança. Excesso de regras, punições e falta de amparo, segurança, carinho e amor causam a grande dependência afetiva e esta pessoa procurará por quem supra sua carência e insegurança na fase adulta da vida

- E é por isso que essas pessoas entram nesses relacionamentos tóxicos?

- Exato, Almir. Por terem baixa autoestima, não acreditarem que são capazes de encontrar uma pessoa de bom nível, acabam entrando nesses relacionamentos tóxicos entre pessoas que não se apoiam, possuem situações conflitantes e acabam atormentando uma à outra. Grande parte das vezes essa relação também é marcada por competição e desrespeito, entre outras características negativas e prejudiciais.

- Morielle, como você encontrava tempo para sair comigo e a Cátia?

- Ele é caminhoneiro, viaja sempre. Eu reencontrei a Cátia participando dessas palestras que ela ministra, pois já algum tempo venho fazendo psicoterapia em um programa gratuito de uma universidade. Ela também não sabia da minha história. Ontem tomei coragem, a procurei e contei tudo. Ela me incentivou a abandoná-lo e ofereceu a casa dela e de sua companheira. Aproveitei mais uma viagem dele e saí de casa só com algumas roupas nessas malas.

- Se você precisar, pode ficar aqui em meu apartamento.

- Melhor não, Almir. Só passei por aqui, porque achei que antes de ir para casa dela, eu tinha que lhe dar uma satisfação. Perdoe-me por ter lhe envolvido nisto.

- Esquece, Morielle, fique em paz. Em nome daquela amizade de escola, estaremos sempre juntos no que for preciso.

PRÓXIMO CAPÍTULO

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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