A VINGANÇA

 

UVAS E MAÇÃS COM O POTE DE BARRO – Emílio Figueira / Out. de 2000 - Técnica: Óleo sobre tela. Med. 0,40 x 0,60

Conduzida pelo mordomo, a jovem e linda moça adentra à mansão indo até aquele senhor, que vai direto ao assunto:

– Teremos amanhã uma festa em minha residência. A partir daí, você começará a sua tarefa. 

– Bem, mais o que deverei fazer, doutor? – indaga a jovem.

– Tenho apenas um filho. Apesar de ele já ter maturidade, nunca se interessou por mulher.

– Será que ele é gay?

– Nem pensar, minha jovem. Já pensei nisso, mas essa hipótese já foi descartada, minha família nunca teve dessas coisas. Ele é um homem muito estudioso. Está cursando doutorado e coloca isso acima de tudo. Para ele, o futuro é mais importante... Até mesmo que as mulheres!

– Onde eu entro em tudo isso?

– Você foi escolhida em uma minuciosa pesquisa feita por uma equipe que contratei. Investigamos todo o seu passado e sua cultura, você me parece ser a pessoa ideal para o que tenho em mente.

O velho magnata toma um gole de seu drinque e continua:

– Quero que o conquiste. A tradição de minha família está toda nas mãos dele. Preciso de um neto, homem, para dar continuidade ao nosso sobrenome.

  – Mas entre tantas moças que há na alta sociedade, por que o senhor preferiu uma estranha?

Ele apenas lhe dá um sorriso autoritário, como quem diz “será mais fácil manter o poder sobre você”. Porém, ela prefere conhecer o resto da proposta. Ser dominada poderia não ser tão ruim assim.

– E o que ganharei com tudo isto?

– É óbvio, minha jovem, entrará para nossa família, receberá nosso sobrenome e desfrutará de nossa fortuna.

* * *

A festa está bem organizada. À beira da piscina, os homens suam dentro de seus smokings, enquanto as mulheres desfilam em seus vestidos de noite, atirando olhares infiéis. 

A moça se aproxima do rapaz e puxa conversa:

– A festa está boa, não?

– Realmente, pena que terei de me ausentar.

– Mas por quê? Algum problema? – Ela pergunta delicadamente.

– É que estou terminando de escrever a minha tese. Dentro de algum tempo, terei a minha defesa de doutorado em Física.

– Nossa, você deve ser um gênio, então!

– Nem tanto. Apenas dedicado. 

– Gostaria de conhecer o seu escritório.

– Tudo bem, é aqui mesmo na biblioteca de casa. Vamos até lá.

O rapaz mostra o seu projeto e sua pesquisa à ela que, embora não entendendo nada, demonstra muito interessada. Então, ele pede:

– Agora, se você me der licença, vou trabalhar um pouquinho.

– Posso ficar olhando você?

– Se quiser...

Ela se senta na poltrona, enquanto o rapaz deixa os seus dedos deslizarem no teclado do computador.

Após alguns goles, ela se atreve:

– Sabia que há coisas mais interessantes para fazer num sábado à noite?

– Como assim? – Ele pergunta sem tirar os olhos da tela.

– Adivinha! – Nesse momento, ela vai até onde o rapaz está e começa a massagear os ombros dele.

Levantando-se, ele se vira para a moça e diz:

– Acho que você ainda não entendeu que tenho...

Ela o interrompe ao tampar a sua boca com a mão esquerda:

– Não fale nada, deixe acontecer...

E o beija vagarosamente. Em seguida, dá um jeito de se livrar do vestido e fica só de sutiã, cinta-liga e calcinha. Ele a fita de cima em baixo.

– Gostou? É tudo seu. Quero que faça amor comigo. Quero senti-lo dentro de mim.

E na penumbra das emoções, tudo acontece ali mesmo num clima de muito romantismo. Suados e ainda despidos, relaxam abraçados, enquanto ela acaricia seus cabelos.

– Sabe, desde o primeiro momento que vi você, o desejei como nunca desejei outro homem – ela confessa e continua: - Senti algo muito forte dentro de mim e isso aumentou agora ainda mais.

– Você quer dizer que eu a satisfiz?

– Sim e muito!

Ele se anima em confessar:

  – Depois desse amor que acabamos de fazer, não consigo imaginar outra mulher que pudesse me proporcionar o prazer que acabei de ter. Você foi praticamente a primeira e não tenho vergonha de revelar isso. Tudo bem, acabamos de nos conhecer, mas acho que não há motivo de nos separarmos por enquanto. O bom é que assim também acalmo os maus comentários ao meu respeito. 

– É, não há motivo algum... Agora, que tal um banho para voltarmos à festa?  Acho que sua tese pode esperar até amanhã.

– Sim, pode, mas só volto àquela festa se for de mãos dadas com você, como namorados.

A moça finaliza com um lindo sorriso.

* * *

Uma profunda relação começa entre eles. Com tempo, cada vez mais aumenta o desejo de um pelo outro. Eles passam a coabitar.

– Como é bom ter a paz que você me dá... Depois do amor, como é bom seu colo para me deitar – o rapaz confessa em meio a um momento de ternura.

– Eu também nunca pensei que iria gostar tanto de alguém como estou gostando de você – a moça está sendo sincera nessas palavras.

O mundo deles torna-se um enorme jardim com muitas flores e pássaros. Um castelo de muita harmonia. Porém, será esse castelo de areia?

* * *

Mais uma festa na mansão e a mesma chatice de sempre. Só que, dessa vez, há um motivo especial: o noivado oficial do jovem casal está prestes de ser realizado.

Ele conversa animadamente com velhos amigos, enquanto ela faz sala para algumas senhoras. Nesse momento, a moça recebe um recado, pelo mordomo, de que alguém a chama na biblioteca e vai até lá:

– Acho que temos de conversar – Diz o pai do rapaz ao recebê-la.

– Sou toda ouvidos, doutor!

– Parte de nosso trato já está feito, você conquistou meu filho. Já está na hora de engravidar.

– Não seria melhor esperarmos oficializar o casamento?

– Minha filha, nesse mundo tempo é dinheiro. Não posso esperar por essas baboseiras. Quero um neto e o mais rápido possível. Você tem um mês para me apresentar um exame positivo ou darei um jeito de tirá-la da jogada. Agora, me dê licença.

O velho sai da sala.  Ela continua em pé ao centro como se algo a incomodasse, mas, ao se virar, uma surpresa... Seu noivo está na porta, olhando-a firmemente.

– Meu bem! – A moça exclama num sorriso.

– Ouvi toda a conversa.

– Não é o que você está pensando – ela muda de aparência.

– Como não? Meu pai contrata uma mulher para me conquistar como se eu fosse um objeto. Você rebaixou-se tanto assim, rebaixou-se a ponto de brincar com meus sentimentos. Droga – ele fica nervoso e, chorando como num desabafo, continua: – Será que você não percebeu que realmente me interessei por você? Que realmente senti algo? E agora descubro tudo isso. Como você quer que eu me sinta? O que quer que eu faça? Que dou risada de tudo?

– Mas eu também estou gostando de você de verdade...

– Mentira! Você quer a minha fortuna. Não respeitou os meus sentimentos, senão teria me contado tudo desde o início.

– Por favor, me dê uma chance. Poderei provar que realmente me apaixonei por você – ela implora.

– Não! Por favor, saia da minha vida.

Ele sai andando rapidamente entre os convidados.

A moça cai no chão chorando como se um castelo de areia estivesse se desmanchando. O velho magnata ordena aos seus empregados que a retirem dali.

* * *

Semanas se passam. O rapaz parece perturbado, sentindo a falta dela. Mas o ódio é maior que os sentimentos de ternura. Para ele, tornou-se um consolo a ponto de não querer cultivar algo pela moça que seu pai tinha contratado. A raiva também pelo gesto do pai faz com que abandone a mansão e vá morar sozinho num apartamento. Agora, sim, poderá dedicar-se em tempo integral a sua tese de doutorado. Consegue, definitivamente, tranquilidade.

Isso, contudo, não acontece com a moça. Alguma coisa a perturba. Não o fato de ter perdido a fortuna, jogando um sonho milionário pela janela. A falta do rapaz a incomoda. Seus pensamentos estão voltados aos momentos que passaram juntos. Nunca nenhum homem causou-lhe tanta nostalgia assim. Sua ausência provoca um incômodo vazio.

Resolve procurá-lo algumas vezes e, embora nunca tenha sido recebida, aquela coisa entranha dentro de si a incentiva a continuar insistindo. Um dia, a moça resolve ir à universidade onde ele faz o doutoramento, pois num lugar público não terá como evitar o encontro.

Ansiosa no saguão, ela percebe quando o rapaz se aproxima com alguns colegas.  Atreve-se a dirigir-lhe a palavra:

– Gostaria de conversar um pouquinho com você.

– Não temos nada para conversar – diz secamente.

– Espere, pelo menos ouça o que tenho à dizer.

– Já disse que não, droga! – ele se altera.

Ela sai dali, mas tem uma nova ideia. Planejando cercar o carro do rapaz, segue até o estacionamento para esperar o momento certo. Porém, inicia-se uma enorme chuva com muito vento. Como não há nenhum abrigo ali, a moça tem de sair rapidamente e procurar onde se esconder.

De repente, um carro se aproxima e o motorista abre a porta e diz:

– Entre, eu dou uma carona para você!

Mesmo sem reparar no carro e em quem o dirigia, ela aceita e entra. Já dentro do veículo, exclama:

– Você!

– Sim, eu. Nossa, como você está molhada. Estou morando aqui perto. Vamos até lá para você se enxugar.

– Preciso falar com você – ela diz num misto de ternura e medo.

– Tudo bem, lá a gente conversa.

* * *

Enxugando-se, a moça pendura suas roupas para secar e se cobre com o hobby do rapaz. Então, dirige-se à sala em que ele toma um drinque.

– Quer tomar algo?

– Não, obrigada. Mas por que você está morando aqui?

– Não quero nada do meu pai. Posso me sustentar por mim mesmo. Mas você tem algo a me dizer?

– Sim, tenho – ela tenta conquistá-lo e convencê-lo de seus sentimentos.

– Como posso acreditar em você depois daquele plano sujo?

– Por favor, você acha que se não fosse verdade eu estaria aqui me humilhando?

– Depois que me fez desenvolver um sentimento puro, descubro que foi tudo um plano de meu pai, que você se vendeu... Acho que tenho o direito de desconfiar.

– Tudo bem, fiquei fascinada pela sua fortuna, mas agora não... Quero você, droga! 

Ela começa a chorar e, desesperada, cai aos seus pés, implorando-lhe:

– Pelo amor de Deus, acredite em mim.

– Levante-se. Não aguento ver você assim.

– E por que não? – Ela indaga, levantando-se e olhando nos olhos do rapaz.

Sem nada responder, ele a deixa beijar sua boca. E o amor acontece novamente.

Mais tarde, abraçados e ainda deitados na cama, ela confessa:

– Quero viver aqui, nesse pequeno apartamento ao seu lado!

– Estou vivendo do meu salário de professor. Lógico que, após o meu doutorado, o meu grau e o meu salário vão aumentar, mas não quero mais nada do meu pai.

– Está ótimo para mim. Quero apenas ser a sua mulher, seja como for... Você perdoa o meu erro, amor?

– Quer saber de uma coisa? Não importa o que você fez no passado. O que importa é o que você fará daqui para frente.

– Tenho uma coisa para confessar... – Ao dizer isso, a moça conta um segredo.

– Isso não importa. Seremos uma família: eu e você!

– Mas há uma pessoa que eu gostaria que soubesse disto.

– Quem?

* * *

Ela vai até a mansão.

– Esperava nunca mais ter que receber a sua desagradável visita – o velho magnata diz entrando na biblioteca.

– O senhor irá ter que me aguentar muitas vezes.

– Por que tanta certeza assim? Sou eu quem dita as regras aqui!

– Seu filho e eu estamos novamente juntos.

Ele dá uma risada e diz arrogantemente:

– Espero que agora você tenha a capacidade de me dar um neto.

– O senhor não precisa ter essa esperança.

– E por que não? – O velho indaga mudando seu semblante de arrogante para sério.

– Aquela pesquisa que o senhor encomendou a meu respeito foi incompleta. Eu sou estéril.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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