CADEIRA DE RODAS

Emílio Figueira - Guache sobre papel tamanho A3 sem títulos

Arnaldo é um músico de meia-idade, 44 anos, cabeludo e barbudo que toca nas noites paulistanas em barzinhos sem muito expressão para um público boêmio que fica bebendo e conversando pelas mesas sem prestar atenção à sua voz e violão. Naquela noite, uma prostituta passa, dar um sorriso para o cantor que retribui.

Madrugada, Arnaldo está tendo relação com aquela prostituta, em seu apartamento. A imagem do sorriso de uma boca jovem vem num lampejo em sua mente. Ele toma um susto.

- Que foi? – Pergunta a moça parando de se mexer.

- Nada não, foi um relance que deu em minha mente.

- Isso se chama cachaça. Você bebe demais, Arnaldo. Às vezes até toca em troca de bebida.

Continuam se relacionando.

No dia seguinte, o relógio na cômoda marca 13:30hs. Ele está sozinho na cama, vai se levantando. Abre a janela, dando para ver o viaduto Minhocão com intensa movimentação.

Continuando em sua velha rotina, tocando em barzinho onde ninguém liga para ele. Bebendo sozinho. Em seguida ele está em sua cama com uma mulher diferente a cada vez. Depois é dia e ele acorda sozinho na cama. Às vezes, durantes as relações, volta a ter a imagem do sorriso de uma boca jovem em num lampejo em sua mente.

Em uma certa noite, o bar tem poucas pessoas. Arnaldo está tomando cerveja sozinho no balcão. Uma mulher se aproxima, perguntando-lhe:

- Posso falar um pouco com você?

- Eu já tenho companhia para esta noite...

A mulher dá risada:

- Não é nada disso. Meu nome é Cláudia. Gostei muito do jeito que você toca e canta.

- Finalmente alguém reconheceu meu talento - resmulga ele.

- Sou gerente de uma fábrica de tecidos. Vamos fazer uma festa de confraternização e quero convidá-lo para se apresentar no dia.

- Vocês pagam bem?

- O suficiente. - Coloca um cartão perto de seu copo: - Aqui está o meu cartão. Qualquer coisa me liga.

Dias depois, Arnaldo, na fábrica, está cantando em um tablado improvisado. Os funcionários estão à sua frente, animados e cantando juntos. Ele começa a cantar “Cadeira de Rodas” de Fernando Mendes. Em sua mente a imagem do sorriso de uma boca jovem vai se abrindo e forma a figura de uma moça sentada em uma cadeira de rodas em uma varanda.

Ele para de tocar assustado. Os funcionários reclamam, pedindo para continuar. 

- Pessoal, foi mal. O show vai continuar.

Diz o cantor, O contor. recompondo-se, continuando a mesma música.

No simples e bagunçado apartamento, madrugada, Arnaldo, sentado no velho sofá, mudo com um copo na mão, fica ali por alguns instantes. Até que se levanta, pondo o copo ao lado da televisão, pensa alto: - É hora de voltar...

Com o seu violão e mochila, vai para a rodoviária logo na manhã seguinte, embarca em um ônibus. Sentado perto da janela pensativo. Sua mente começa a ter flashback.

Toca o sino e um grupo de crianças sai correndo em direção à praça da igreja matriz. Algumas vão para outra direção com seus pais.

Na praça, Arnaldo, que nessa época era chamado de Guri, para e olha uma casa que fica há um metro acima do nível da rua. Olha na varanda, onde uma menina, Carol, sentada em uma cadeira de rodas e sozinha olha a tudo com um semblante triste. Um amigo se aproxima dele.

-Por que aquela menina não está na escola com a gente?

- Acho que os pais dela não deixam, Guri. Ela é filha do novo gerente do banco.

Responde um amigo e os dois saem correndo.

Em sua casa, com um leve fundo musical, Carol, a menina da cadeira de rodas, está na mesa de estar de sua casa com cadernos e livros. Uma professora vai lhe explicando, enquanto se ouve o som das crianças correndo e gritando felizes lá fora.

Nos dias seguintes, cria-se uma rotina. Todos saem correndo da escola. Guri para na praça quase em frente à casa de Carol e se olham. Ela abre um sorriso. Ele colhe uma flor, vai até o portão e a joga para ela.

O tempo passa. Já adolescentes, Guri toca seu violão na praça rodeado de amigos. Carol ouve as músicas de sua varanda.

- Minha vida é essa, pessoal. Ainda serei um grande músico – comenta ele.

O pessoal aplaude, comemorando. Ele toca mais um pouco. Para, o pessoal vai se dispersando. O rapaz caminha até o portão da moça, tira um bilhete e joga no colo dela que também lhe joga um papel dobrado.

Trocam lindos sorrisos e ele parte lendo o bilhete.

É um bailinho caseiro. Muitos jovens papeando pelos cantos, outros dançando no meio da sala, enquanto Guri toca e canta acompanhado por outros músicos. Muita animação. Já na madrugada, a cidade está em total silêncio. O jovem, carregando seu violão atravessa a praça, olha parado a casa da moça de cadeira de rodas.

Ouve de um amigo chegando por traz:

- Você está mesmo encucado com essa moça, em Guri?

- Ela mexe muito comigo. Bem que poderia ter ido ao baile com a gente.

- Imagina, Guri. Os pais dela são superprotetores. Nem deixam a moça estudar em uma escola normal. Contratam professores particulares para dar aulas em casa.

- Nem amigas eles permitem que a Carol tenha.

- Pois é, quanto mais ir a um bailinho. Vem, vamos embora.

E saem caminhando pela noite.

Em uma tarde quente, ele está tocando na praça rodeado dos amigos e sendo observado por Carol. Para de repente, anunciando:

- Pessoal, agora quero mostrar uma canção que acabo de compor. Ela se chama Carol.

Toca e canta a música. Ao terminar, olha para Carol lá em sua varanda que lhe sorrir emocionada.

Semanas depois, pessoas estão embarcando no ônibus na rodoviária.  

- Chegou a hora de partir, meu amigo. Vou atrás do meu sonho de ser um grande músico.

- Você avisou a Carol que ia partir, Guri?

- Não tive coragem. Mas assim que eu vencer na vida, venho buscá-la.

Abraçam-se forte.

De volta ao presente, Arnaldo e outros poucos passageiros desembarcam do ônibus na praça da matriz. Ele caminha lentamente até a frente da casa de Carol com aspecto de abandonada. A olha por alguns instantes.

Minutos depois, com a mochila e violão vai entrando em uma casa bem simples, pedindo:

- Dá licença mãe. É o Arnaldo, estou entrando...

Ouve uma voz fraca vinda do quarto:

- Aqui meu filho, estou deitada.

Entrando, sua mãe está fragilizada na cama. Ela larga a mochila e violão e corre até ela.

- Que foi mãe? O que aconteceu?

- Estou muito doente. Não tenho ninguém para me ajudar. Tem dia que não tenho forças nem para fazer minha comida.

Arnaldo a abraça forte:

- Pode deixar mãe. Agora vou cuidar da senhora.

Logo após o almoço, Arnaldo, caminhando pela rua e repara que só há pessoas mais velhas transitando, chega em frente da quitanda onde um senhor varre a calçada.

- Fala seu Juca. Bom dia, tudo bem?

- Bom dia, moço... - O olha como se não o reconhecesse.

- Seu Juca, sou eu, o Guri que tocava violão na praça.

- Rapaz, quanto tempo... - Abraçam-se com alegria: - O que fazes por aqui?

- Vim visitar minha mãe. Mas me diga, cadê o pessoal da minha época?

- Foram todos embora construir suas vidas. Só ficaram nós, os velhos...

- Não diga isso, seu Juca.

- Mas me diga, você vai ficar algum tempo por aqui?

- Minha mãe está muito doente. Vou ficar para cuidar dela. Só que preciso arrumar alguma ocupação para ganhar algum. Minha mãe só tem a pensão do meu pai para pagar aluguel e comer.

- Na cidade ao lado tem uma usina de açúcar que emprega muita gente aqui da cidade. Eles estão sempre precisando de mão-de-obra.

Em frente ao prédio da administração da usina, ARNALDO está varrendo o gramado junto com outros colegas, quando Carolina, uma mulher de 41 anos, vem rodando sozinha as rodas de sua cadeira, com o colo cheio de pastas. Ela para ao lado de seu carro e procura as chaves na bolsa. Ele larga a vassoura e vai ajudá-la, pegando as pastas de seu colo.

- Obrigada. Você é novo por aqui, né?

- Sim senhora. Eu comecei ontem como ajudante de serviços gerais.

Ela abre seu carro, passa para o banco do motorista, fecha a cadeira de rodas e coloca no banco de traz. Arnaldo dá volta no carro, abre a porta do carona e coloca as pastas em cima do banco. A mulher fecha a porta e parte, dirigindo o carro adaptado.

Um colega de trabalho aproximando-se dele contando:

- Essa é dona Carolina, administradora da usina. Gente boa.

- Ela é chique, né? – Observa Arnaldo.

- Mas não é pro nosso bico. Dona Carolina é casada com um dos maiores advogados da cidade.

Anoitecendo, voltando dentro do ônibus de funcionários, ele, ar de cansado, vai pensando: “A Carol e dona Carolina não podem ser a mesma pessoa. Seria coincidência demais.”

Quase na madrugada, Carolina está no escuro de sua sala quando seu marido, um homem de 43 anos, chega, acendendo a luz.  Ela pergunta:

- Isso são horas de chegar?

- Você não tem nada com isso, sua tonta.

- Com certeza, estava com outra mulher.

O marido responde arrogantemente:

- Sim, estava com uma mulher de verdade. E você não tem que falar nada. Eu fiz o favor de me casar com você. Afinal, quem iria querer se casar com uma mulher deficiente!?

Na usina, Arnaldo está arrumando uma instalação elétrica no pátio. Carolina chega, estaciona o carro, abre a porta, coloca sua cadeira pra fora, monta, sai do carro e vai rodando com várias dificuldades até dar a volta no prédio.

Ele corre para procurar seu encarregado. Conversam no almoxerifado, um cômodo cheio de ferramentas, equipamentos de segurança.

- Isso é loucura, Arnaldo.

- É não, seu Nelson. Eu vi várias reportagens. Hoje todos os lugares públicos e de trabalho precisam ser adaptados com acessibilidade para todos.

- Tá, e o que a gente ganha com isso?

- Evita uma pesada multa. Ganha pontos por ser uma empresa que se preocupa com todos. Além do mais, temos uma cadeirante trabalhando aqui. Vi a dificuldade que ela tem em se locomover. Precisa até rodear o prédio para entrar por traz, sem entrar pela frente como todo mundo. Isso também será pontos com a administração.

Hora do almoço no refeitório. Arnaldo está em uma grande mesa almoçando com seus colegas. Carolina entra e vai almoçar em uma mesa lá no canto, sendo observada por ele.

Nos próximos dias, de pedreiros e ajudantes trabalhando em obras de adaptações. Semanas depois. Logo após o almoço, ele descansa, sentado em um banco olhando o lago da usina. Carolina vai se aproximando até parar ao seu lado.

- Eu vim lhe agradecer.

- Agradecer do que, dona Carolina?

- Fiquei sabendo que foi sua a iniciativa de propor as adaptações aqui na usina. Afinal, qual o seu nome?

Olha para ela numa pequena pausa pensativa:

- Arnaldo, senhora...

Em uma festa da sociedade, Carolina está sozinha em uma mesa. Seu marido caminha pela festa conversando e jogando charme para várias moças bonitas. No escuro do quarto, a moça chora sozinha em sua cama.

Arnaldo serve um prato de comida para sua mãe na cama. Enquanto ela come, ele vai arrumando o quarto, ajeitando as coisas. Depois, ela vai às compras. Caminhando com sacolas, ele vê Carolina tentar entrar em um restaurante com um degrau na porta. Corre para ajudá-la.

- Dona Carolina, a senhora por aqui?

- Oi Arnaldo. Eu vim resolver uma documentação no cartório de uma antiga propriedade da família.

- Deixe-me ajudá-la a subir o degrau.

- Obrigada. Você é um anjo que sempre aparece para me ajudar. Aproveite e almoce comigo.

Conversam enquanto comem.

- Você é dessa cidade mesmo, Arnaldo?

- Sim, nasci aqui. Tenho vários irmãos espalhados pelo mundo fazendo a vida. Meu pai já faleceu. Hoje moro de aluguel e cuido de minha mãe muito doente.

- Sabe, fui criada nesta cidade. Vim para cá ainda muito menina, morava naquela casa ali na praça. Meu pai era gerente de banco, minha mãe dona de casa. Era muito autoritário na época. Parecia querer me esconder da sociedade para me proteger. Não me deixou estudar no grupo como as outras crianças. Eu tinha que ficar na varanda, olhando a vida passar de longe. - Dá um sorriso: - Tinha até um menino, o Guri, que flertava comigo, trocávamos olhares, bilhetinhos. Ele tocava violão na praça, até fez uma música pra mim. Mas ele sumiu com o vento...

- Lamento. Como você se formou em administração de empresa?

- Meu pai foi transferido para a capital. Lá, ele me permitiu estudar em uma escola especial e fui até chegar à faculdade. Ele comprava várias ações dessa usina. Tinha um amigo que também tinha várias dessas ações. Juntos eles teriam a maioria, mas pelo estatuto da usina, só uma família pode assumir a presidência. Como esse amigo do meu pai tinha um filho advogado, seu pai passou as ações para o nome dele. Meu pai passou as dele para o meu nome. E promoveram um casamento por conveniência. Acabei aceitando, achava que seria a única opção para minha vida. Na faculdade nunca fui convidada para os ‘rolês’. Nunca fui a opção dos garotos e dos times e esportes.  Depois de formada, passei a ser vista apenas como ‘exemplo de superação’ e representada na mídia com uma visão capacitista da deficiência por ser uma administradora de empresa.

- E você é feliz, dona Carolina?

Ela fica em silêncio por alguns segundos, respondendo:

- Bem Arnaldo, mudando de assunto. Já que você mora de aluguel, poderia fazer um favor para mim. A residência aqui de minha família está fechada a anos. Que tal você e sua mãe morar nela só em troca de conservá-la?

Ao voltar para casa, seu marido está lendo o jornal no sofá. 

- Onde você estava?

- Fui resolver o problema da escritura daquela casa da minha família.

- É só pra isso que você presta mesmo. Para trabalhar. Nem para ser mulher de verdade, você serve.

- Não enche o saco. Vou descansar porque hoje tem aquele encontro de mulheres do comitê de caridade.

- Só que você não vai...

- Como é que é???

- É isto mesmo. Você está proibida de sair de casa.

Arnaldo e sua mãe vão conhecer a antiga casa de Carolina. Ele tem alguns flashbacks de sua infância e adolescência.

            No dia seguinte, almoçando no refeitório, é surpreendido quando Carolina deixa de se sentar na mesa da diretoria e vem se sentar em sua mesa. Passam vários momentos de uma pura amizade, onde ele sempre está ajudando-a ou em simples momentos pelas dependências da usina.

Logo pela manhã, Arnaldo está varrendo o pátio, Carolina estaciona seu carro e desce com a cadeira de rodas. Ela tem um hematoma no rosto.

- O que foi isso, dona Carolina?

- Ontem, saindo do banho, eu escorreguei da cadeira e caí no chão, bati o rosto. Mas foi bom lhe encontrar. Arnaldo vou lhe pedir um favor. Você pode ir consertar uma instalação elétrica lá em casa? 

Ele está no quintal mexendo na caixa de energia, quando ouve vozes altas vindo da sala. Carolina está sendo humilhada pelo marido.

- Não aguento mais ser traída descaradamente por você.

- Você nem mulher direito é, não passa de uma aleijada. Fiz o favor de me casar com você só por causa da usina. Você nunca seria ninguém na vida sem mim. Saio mesmo com outras mulheres que me realizam como homem.

-  Eu quero me separar de você. Vou contar tudo para meus pais.

Dá um tapa na cara dela, derrubando-a ao chão.

- Nunca mais diga isso...

Arnaldo invade a sala, investido contra o marido. Eles brigam por alguns instantes.

- Vocês vão me pagar...

O marido da sala. Arnaldo vai levantar Carolina, colocando-a na cadeira.

- Eu ouvi tudo. Você precisa denunciar esse cara às autoridades. Precisa pedir uma medida protetiva.

- Eu tenho medo. Ele é muito influente na cidade.

- Mas você também tem pessoas para lhe apoiar. Eu, por exemplo.

- Por favor, pega o meu celular na mesa.


Eles estão saindo da delegacia, quando seus pais chegam correndo e a abraçam forte.

- Minha filha, viemos assim que você ligou.

Seu pai diz:

- Pode deixar Carolina, agora vamos protegê-la. Aquele crápula nunca mais vais se aproximar de você.

Carolina está sozinha olhando o lago da usina. Têm flashbacks do tempo que era moça e o Guri tocava na praça, trocava bilhetinhos com ela. Ouvi vir por traz a música que foi feita para ela. Ao se virar para ver, Arnaldo de barba raspada e cabelos curtos, tocando e cantando, vindo devagar em sua direção. Ela abre um lindo sorriso que vai se sobrepondo à imagem do seu sorriso de adolescente na varanda de sua casa quando olhava para ele.

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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