Capítulo 6 - OS CRISTÃOS COM BANDEIRAS E SUAS BOLHAS

Àquela matéria levou Yara a um começo de depressão por algumas semanas. Só que, para sua surpresa, um grupo de pessoas foi até sua casa para uma conversa.
- Eu não entendo, sempre ouvi que o Brasil é um lugar tolerante e que aqui as diferenças desaparecem e convivemos em harmonia. Religiões por todos os lados e até as mais diferentes parecem coexistir pacificamente – disse a moça: - Eventos ecumênicos com a presença de representantes de muitas denominações religiosas. Eu nunca me coloquei contra elas. Aliás, também não estou contra o dízimo, embora eu tenha algumas restrições contra ele. O dízimo vem da antiga lei dada a Israel dentro de um conjunto de leis judaicas. E por que hoje só pegamos o que nos convém, e não toda a lei? No meu entendimento, Jesus veio para eliminar a Lei, as obrigações, dando-nos liberdades de agirmos pelo amor. Para nós cristãos não é obrigado a dizimar, mas temos uma responsabilidade perante a igreja para contribuir para o seu sustento. Temos que orar a Deus e ofertar à obra de Deus aquilo que Ele tocar em nossos corações. Foi assim que os primeiros cristãos davam muito mais que o dízimo e davam com alegria como está em Atos dos Apóstolos 4, versículos 34 e 35: “Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um”.
Rubens completou calmamente:
- No cristianismo não há nenhuma quantidade específica para dizimar, mas devemos dar dentro das nossas possibilidades com alegria e generosidade. “Deus não quer que você dê mais do que consegue”, 2º Coríntios. Cap. 8, versículos 12 e 13. “É bom criar o hábito de ofertar com regularidade”, 1º Coríntios, cap. 16, versículos 1 e 2. Ou ainda “Ofertar não é uma obrigação, é uma bênção, porque significa que Deus providenciou!”, 2º Coríntios cap. 9, versículo 7. Mas não vou entrar no mérito dessa questão.
Um sociólogo que participava da visita, observou:
- Religião também é cultura, fruto da imensa criatividade e plasticidade humana. Basta que um grupo se separe que logo teremos a constituição de novas maneiras de viver, de novas formas de linguagem e, também, novas visões de mundo e de religiosidade. 
- O surgimento de novas bolhas – pensou alto Sílvia.
- Enquanto as sociedades humanas são pequenas, o sistema religioso era comum a todos os indivíduos de um mesmo grupo – novamente o sociólogo: - Quando os grupos se separam, tendem a formar novas etnias e as marcas identitárias, entre elas a religião, serão utilizadas no jogo de estabelecimento de fronteiras entre os povos. Surgem cada vez mais conflitos entre os grupos, inclusive de ordem religiosa. 
- Sim meus amigos, mas de onde vem tanta intolerância religiosa?
E Sílvia respondeu à Yara:
- A intolerância religiosa tem duas fontes de origem. Primeiro, o desconhecimento, porque a pessoa desconhece, ela supõe que o outro seja estranho, equivocado e até inferior àquele tipo de percepção que ela tem. Segundo, a crença exclusiva na sua própria forma de pensar e achar que aquilo que está fora do que eu penso, não tem validade alguma e que eu nem preciso conhecer aquilo que o outro pensa. São os que eu chamo de pessoas que defendem suas crenças como bandeiras únicas. Por dentro, ou inconscientemente, reside nelas grandes inseguranças pessoais. Para se sentirem seguras ou convictas nas crenças que abraçam, essas pessoas precisam atacar as outras crenças como erradas. Como no futebol, para eu defender que o meu time é o melhor, preciso defender que o time adversário não presta. Como na política, para eu me autoconvencer que minhas convicções são as melhores, preciso atacar, desmoralizar quem tem convicções diferentes das minhas. E assim meus amigos, cada denominação religiosa, seja ela micro, macro, nova ou tradicional, vai formando bolhas a parte, enquanto o cristianismo, por exemplo, deveria ser uma unidade. Claro que não estou condenando nenhuma dominação, pois a diversidade é algo de tamanha grandeza. Mas acredito que qualquer cristão que esteja em qualquer denominação, deveria ser estimulado a transcender essas ditas bandeiras, vendo os de dominações ou de crenças diferentes, como irmãos crendo em um mesmo Deus e nunca como adversários religiosos!
- No mundo vivem sete bilhões e meio de pessoas com culturas e religiões diferentes – observou Yara: - E quando atacamos a religião do outro, deixamos de praticar a nossa!
Rubens fez a seguinte observação:
- Religião é um grupo de pessoas ligadas a uma mesma fé, a uma esperança, buscando um sentido para vida. Isso é totalmente positivo. O problema é que muitos defendem suas religiões como a única e verdadeira, defendida como uma bandeira, como bem observou a nossa amiga psicanalista. E daí surgem as intolerâncias religiosas.
- Na verdade, Rubens, a intolerância religiosa não aumentou, o que aumentou foram as denúncias. Aumentou o número de legislação que protegem a liberdade religiosa. O nosso país nos últimos 50 anos, ele se ampliou em termos de formações educacionais, ferramentas democráticas, imprensa livre, cidades maiores. Antigamente em cidades pequenas, por exemplo, quem não fosse católico e não visto nas missas dominicais, não era bem-visto na comunidade. Se não fosse católico e tivesse algum comércio então, ninguém frequentava o seu estabelecimento.
Yara completou:
- Hoje o que aumentou foi a recusa à intolerância e o que mais ajuda nisso são outros canais como as redes sociais. As plataformas digitais é um terreno fértil para que o idiota se mostre, inclusive ser intolerantemente idiota. Uma potencialização à manifestação da intolerância! E como diz Provérbios 10, versículo 12, “o ódio desperta rixas; a caridade, porém, supre todas as faltas”. 
- Hoje muitas igrejas pregam sobre a prosperidade, mas raramente pregam sobre a caridade, o amor e respeito por quem pensa ou age diferente – disse o sociólogo: - Os pregadores precisam rever o que Jesus Cristo realmente nos pediu. Grande parte das religiões estão muito mais focadas em doutrinar, ditar comportamentos, aprisionando seus membros cada vez nessas bolhas fragmentadas que se tornou o cristianismo. Em muitas delas, principalmente nas fundamentalistas, as pessoas têm aparências tristes, semblantes carregados de regras e cobranças, enquanto deveria ser ao contrário, deveriam ser as pessoas mais felizes e leves do mundo por terem certeza que são filhas de um Deus altíssimo. Aliás, hoje grande parte dessas dominações parecem customizar Cristo segundo o foco de interesse de cada uma. No fundo pessoal, muitas das igrejas atuais precisam reintroduzir Jesus Cristo nelas para que o amor de Deus se cumpra, as bolhas sejam ultrapassadas, as bandeiras abandonadas e em uma sincera união cristã mudaremos o mundo para melhor por meio da caridade e do amor ao próximo.
Yara, citando Mateus 24, versículo 12: 
- Resumo da ópera meus amigos, “e, ante o progresso crescente da iniquidade, a caridade de muitos esfriará”.

No geral, o mundo vivia uma época onde a virtualidade matou sentimentos como a caridade, solidariedade, convivência, tolerância. E no mundo cristão não era diferente. A arrogância era tão grande que as pessoas precisavam atacar quem praticava a caridade para alimentar seus narcisismos. Um narcisismo intelectual, com grande necessidade de desmoralizar quem era visto como inimigo por pensar diferente. Todas as vezes que alguém era tocado em seus defeitos ou inércia, reagia com violência em redes digitais.
Era a época que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman dizia que escorria pelas mãos, um tempo líquido em que nada era para persistir, ser tão intenso que conseguiria permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. Não havia a observação pausada daquilo que experimentamos, sendo instantaneamente preciso fotografar, filmar, comentar, curtir, mostrar, comprar e comparar.
Tempos de muita ansiedade, onde tudo ser perdia no consumismo imediato. Onde grandes amizades morriam por insignificantes descartar de opiniões em discussões mudas e distantes, simbolicamente bloqueadas em redes sociais. Tempos em que se perdeu a profundidade das relações, a conversa no mundo real, possibilitando a harmonia e abraços ao vivo. Tudo poderia ser facilmente deletado: os amores, os amigos!
As relações começavam ou terminavam sem contato algum, quando o outro era analisado por suas fotos e frases de efeito. E, ao mesmo tempo em que experimentávamos um isolamento protetor, vivíamos uma absoluta exposição, sem privacidade, tudo era desvendado, as pessoas expunham toda a sua rotina, o que se comia, o que se comprava, lugares onde estavam, com quem se estava, o que as atormentavam, o que as alegravam. Comportamentos que escondiam a grande necessidade de serem aceitas, terem seus egos massageados. O amor era mais falado do que vivido em um tempo de secreta angústia, sentimento do nada, inquietando o corpo, sufocando a alma. “Estamos todos numa solidão e numa multidão ao mesmo tempo”, dizia Zygmunt Bauman.

No dia seguinte, à tarde, Yara passeava com um cachorro em uma rua de casas de classe alta, quando um casal saiu de uma residência. A moça loira, olhos azuis, muito bonita, entrou no carro importado estacionado. O rapaz ao vê-la, veio em sua direção.
- Boa tarde, Yara...
- Boa tarde, pastor Hilário. Como tem passado?
- Muito bem. Viu só? Àquela no carro é minha noiva. Casaremo-nos no próximo mês.
- Felicidades ao casal!
- E tem outra, fui transferido para uma igreja bem maior como primeiro pastor. Viu só tudo que você perdeu por não querer se casar comigo? Você Yara, nunca passará de uma mera passeadora de cachorro que pensa muito pequeno, tendo dó de pessoas miseráveis.
- Se essa fora a vontade de Deus, Ele continuará sendo louvado pelo amor sincero de meu coração!
Hilário ficou olhando fixo no rosto de Yara por alguns segundos. Ela quebrou o silêncio, dizendo-lhe:
- Como escreveu certa vez Augusto Cury, "muitos cabos querem ser sargentos, muitos empregados querem ser empresários, muitos políticos querem ser reis, muitos reis querem ser deuses, mas para o espanto das ciências humanas, o único homem que foi chamado filho de Deus queria ser apenas servo".
O pastor virou-se e foi embora.

Ao entregar o cachorro à proprietária, uma senhora bem velhinha, pediu-lhe um serviço a parte para que ela fosse buscar um livro em um sebo no centro da cidade. Yara foi com muito carinho.
Na loja aproveitou para caminhar um pouco entre o acervo, pois ela era uma moça que lia demais. Na seção de discos antigos sentiu vontade de manuseá-los. Até que parou em um que a surpreendeu grandemente.
Na capa estava a foto de seu amigo e escrito: “Rubens Castro, O maior pianista intérprete de Ernesto Nazaré“!

Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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