Capítulo 7 - O PIANISTA E O AMOR BRUSCAMENTE INTERROMPIDO

Na manhã seguinte, Rubens estava sentado no banco de sempre, quando Yara chegou, esticou o braço com o álbum do LP à mão, dizendo-lhe:

- Parabéns, senhor pianista! Será que o Rubens Castro, maior intérprete de Ernesto Nazaré, pode autografar o meu disco?

- Eu não sei do que você está dizendo, Yara... – Falou o rapaz tremendo.

- Meu amigo, você não precisa esconder nada de mim – disse a moça com ternura, sentando-se ao seu lado.

- Prefiro não falar sobre esse assunto – foi se levantando para ir embora: - Essa é uma história que me dói muito.

Yara o segurou pelo braço, dizendo com firmeza:

- Você não precisa fugir de mim. Eu já pesquisei tudo ao seu respeito. E outra, eu sempre confio em você. Chegou a hora de você confiar em mim...

Ele voltou a se sentar e a falar timidamente:

- Essa é uma longa história. Sou de uma família de avós e pais crentes de uma dessas igrejas bem fundamentalistas. Durante a minha infância e adolescência, vivi dentro desse ambiente. Mas estudava música, queria me profissionalizar, viver da minha arte, o que não era permitido por eles. Acabei me afastando da igreja, comecei a tocar na noite, com orquestras, a ter dinheiro para estudar com grandes mestres. E minha vida passou a ser só estudar, estudar, estudar, tocar, tocar, tocar...

- Foi aí que você se tornou o grande pianista, intérprete de Ernesto Nazaré, fazia shows em grandes casas de espetáculos no Brasil e exterior, gravou mais de vinte discos?

- Sim Yara, o reconhecimento, a fama, dinheiro era grande. Havia chegado aonde eu desejava, até mais. Só que dentro de mim havia um vazio existencial, uma tristeza, parecia faltar algo.

- Seria a falta da presença de Deus, Rubens?

- Exatamente. Então aos quarenta anos, eu voltei a frequentar a igreja da minha família. Foi quando conheci uma irmã dois anos mais velha do que eu. Ficamos amigos e naturalmente algo mais forte foi acontecendo. Ela era muito linda, cabelos longos, lisos e ruivos, meiga, delicada, romântica, vestia-se bem. Era tudo que eu sonhei para minha vida. Ela era a minha pequena!

- Olha só, o meu amigo Rubens apaixonado! – Disse Yara sorrindo.

- Pois é. Nossa identificação era tanta, que cada vez mais sentíamos vontade de estar um com o outro, conversar muito, trocar confidências. Nosso romance era puro, delicado, sem nenhuma maldade. Eram tão gostosos os nossos abraços! Meu maior sonho era me casar com ela, fazê-la uma esposa muito respeitada e feliz. E juntos ganharmos o mundo...

- Se tudo era tão lindo, por que não acabou em casamento?

- Minha pequena era filha de um dos líderes da igreja. Um homem autoritário e dominador. Ela vivia oprimida pelo pai e tinha muito medo dele. Por isso, nossa história rolou durante sete meses em segredo. Até que um dia ele descobriu por meio de gente maldosa a quem confiávamos. Ele proibiu o namoro, dizendo que não permitiria que sua filha se casasse com um músico mundano. Disse mais... Que era um jugo desigual uma moça branca se casar com um rapaz negro.

- Que absurdo, Rubens, em nenhuma parte da Bíblia está escrito isso. Chega a ser revoltante. Tá, mas e aí, se o romance de vocês era tão puro e forte, ela não enfrentou o pai em nome do amor de vocês?

- Não, era tão oprimida que não teve forças. Uma coisa que acho que nem ela sabe, é que alguns de seus parentes e irmandade próximos me disseram coisas horríveis, chegaram ao ponto de inventarem calúnias ditas por mim à ela. Na minha igreja, esse acontecimento chegou ao conhecimento de alguns irmãos, virei motivo de chacotas, até que me afastei novamente não digo da casa de Deus, porque a verdadeira casa do Senhor é o meu coração!

- É meu amigo, infelizmente essas histórias acontecem muito frequentemente nessas denominações que seguem a Bíblia ao pé da escrita, não dando margem a interpretações. Criam uma doutrina muito pesada aos seus membros. Como diz Colossenses 2, versículo 8, “tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo”. Na verdade, a maioria dessas igrejas são seitas com três características básicas. Primeiro, elas nascem de alguém que está dentro de uma igreja, não concorda com o que é dito, ou pregado, sai e funda a sua própria igreja, alegando ter sido uma revelação de Deus, mas a verdadeira igreja do Senhor foi fundada em Atos 2. Segundo, defendem com unhas e dentes que são o único povo de Deus que será salvo. E terceiro, isolam-se, não tendo comunhão com as demais igrejas cristãs. E isso acaba se refletindo no dia a dia, pois também se isolam do convívio social.

- Nunca pensei nisso, Yara.

- Só que não podemos culpar os membros não, Rubens, eles formam um povo de muita fé e realmente temente a Deus, com suas orações sempre respondidas por Ele, embora quem segue uma dominação religiosa com regras rígidas estabelecidas, tem o compromisso com algo que os homens que a criaram e não com a liberdade pregada por Jesus. Eles praticam muita caridade, mas só entre os seus próprios membros. E com isso, eles alimentam cada vez mais grandes bolhas de isolamentos, enquanto Jesus Cristo pregava o convívio social de todos que acreditavam e quisessem seguir Seus ensinamentos.

- Eu sei que nenhuma religião é perfeita, todas têm pontos positivos e negativos. Sabe, às vezes penso que essas igrejas se mantém ortodoxas por inseguranças de seus dirigentes em abrir para o novo e perderem o controle. E com isso, estão perdendo cada vez mais membros.

- Sim, mas não vamos entrar no mérito da questão. Todo o julgamento de quem é certo ou errado cabe somente a Deus! Voltando à sua história, o que aconteceu com você após esse episódio?

- Nossa separação foi uma das maiores dores que já senti. Era como se o sonho de felicidade de uma vida toda me fosse arrancado violentamente. Até minha carreira perdeu o sentido. Afastei-me de tudo. Não tive coragem de ir para casa de meus pais no Paraná, pois lá seria pressionado à voltar para igreja onde, simbolicamente, eu teria muitas recordações dela. Então vim morar nessa pensão há dois anos.

- E você sobrevive do que, meu amigo?

- Dos direitos autorais de meus discos. Uma vez por mês, meu advogado que administra isso vem me trazer o pagamento.

Levantaram-se do banco. Yara lhe deu um abraço demorado, afirmando-lhe:

- Meu querido amigo, você ainda vai ser muito feliz!

E depois de muito tempo, Rubens Castro sentiu um sincero e afetuoso abraço.

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Emílio Figueira - Escritor

Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades. Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo independente. Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de noventa títulos lançados. Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira foi professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva. Atualmente dedica-se a Escrever Literatura e Roteiros e projetos audiovisuais.

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